Serro Azul transformou a vida dos moradores da região

Com o objetivo de conter enchentes na Zona da Mata Sul e no Agreste Pernambucano, o Governo do Estado de Pernambuco, junto ao Governo Federal, planejou a construção de cinco barragens de defesa contra inundações, abrangendo as bacias hidrográficas dos rios Una e Sirinhaém. A iniciativa surgiu após enchentes atingirem a região em 2010. Na época, 20 pessoas morreram e mais de 700 mil foram afetadas em 61 municípios. Houve uma perda de R$3,4 bilhões – valor correspondente a 4% do Produto Interno Bruto (PIB) do estado. Em Alagoas também houve estragos. 20 municípios foram afetados, de acordo com a Avaliação de Perdas e Danos elaborada pelo Banco Mundial, em 2012.

Das cinco barragens prometidas em Pernambuco, apenas a de Serro Azul foi concluída (2017) – para a felicidade de uns e tristeza de outros. O reservatório recebe o mesmo nome do distrito onde localizado – à cerca de 150 km da capital pernambucana.

O lugar é caracterizado por uma população humilde e carismática. No século 19, funcionava, na região, a Usina Serro Azul, importante meio para o desenvolvimento agrícola e industrial do local. É comum, ao conversar com muitos moradores, descobrir que ainda estão por lá descendentes das primeiras gerações de trabalhadores e trabalhadoras da usina, mantendo os hábitos e costumes familiares. “Serro Azul é tudo pra mim. É a minha vida. Eu cheguei aqui com 8 anos de idade e hoje tenho 80. Eu gosto muito desse lugar. Aqui cresci e me criei junto com meus familiares, que trabalharam na usina”, lembra o mecânico Laércio Francisco de Assis.

Foto: Ruínas da Usina Serro Azul.

A barragem fica em uma área muito próxima às residências do vilarejo. Na estrada que leva até o distrito, a PE-103, a enorme construção de concreto pode ser vista do lado esquerdo da rodovia por todo o percurso de quem parte do município de Palmares. Seguindo adiante, o prédio de um antigo cinema chama atenção por continuar resistindo ao tempo. Dentro dele, só uma parte do teto. O chão só tem capim, dando brecha para alguns moradores criarem seus animais por lá.

Foto: Ruínas da antigo cinema de Serro Azul.

Encontramos em frente ao cinema, em um banquinho improvisado de cimento, o maquinista e vigilante José Lourenço Severino, 86 anos, que mora no distrito desde que nasceu. “Quase todo dia estamos eu e esse meu amigo aqui, conversando”, explica José enquanto fazia companhia ao seu vizinho, que preferiu não se identificar. Por trás do casario, passa o Rio Una e, pouco mais adiante do rio, está a barragem. “Não acho ela segura porque nada feito pela mão do homem tem segurança”, afirma o ex-maquinista. “Para alguns a barragem foi melhor, para outros foi ruim. Teve gente que perdeu muita coisa porque teve que sair de suas casas para construir a barragem e o reservatório que a água tomou conta. Tem muita gente que quer ir embora daqui por causa dela, mas não tem dinheiro”, complementa. 

Foto: José Severino em frente ao cinema de Serro Azul.

No mesmo arruado, casas grandes com a arquitetura antiga chamam a atenção. É possível ver, entre o curto caminho de concreto do distrito, sendo a maioria das ruas ainda com estrada de barro, a famosa Casa Grande da Usina Serro Azul, em ruínas, assim como partes da própria usina, que teve participação importante na economia e na história do Estado, mas hoje encontra-se abandonada e utilizada como depósito de lixo e entulhos. A Casa Grande do Engenho Verde, famosa na região por também ter sido um ponto turístico – funcionando como hotel fazenda e restaurante, hoje é inexistente, pois o reservatório da barragem inundou o local.

Foto: Destroços da casa grande da usina de Serro Azul.

Nos fundos do ‘famoso’ Bar do Amaro, como é conhecido o boteco que pertence a sua filha, que preferiu não se identificar, podemos avistar o Rio Una e, bem próximo, a barragem de Serro Azul. Lá é o point para os moradores do distrito e da região, que sentam-se nas cadeiras de plástico e pedem, em sua grande maioria, cerveja, refrigerante ou uma dose de cachaça. Sertanejo, forró eletrônico e Música Popular Brasileira (MPB) são os sucessos mais solicitados pela clientela, de acordo com Amaro. Com o calor de, em média, 29º C, todos preferem ficar com as mesas e cadeiras nas calçadas, enquanto a parte de dentro do bar fica vazia. Na área de trás do empreendimento, longe do barulho e dos clientes, seu Amaro alimenta saguis e outros bichos que, ocasionalmente, visitam o estabelecimento.

Além de trabalhar neste ramo, Amaro Miguel da Silva também é o presidente da Associação dos Moradores da Comunidade de Serro Azul (Amcusa). “Serro azul representa tudo pra mim. Foi aqui que nasci e me criei, tô criando meus filhos e isso aqui era um pedaço do céu. Tinha muitas cachoeiras, muita água, muita agricultura e hoje a gente se sente em uma situação como essa, sem poder fazer nada e sem nenhuma expectativa de vida”, destaca entristecido o presidente da Amcusa. “Além da gente viver com o desemprego, o comércio daqui faliu. A estrada, que aqui tinha um desvio para Bonito, não tem mais. O Governo prometeu indenizar os moradores que moram aqui no pé do paredão e até hoje ninguém tem respostas”, complementa.

O município de Bonito, conhecido pelos pernambucanos pelas sete belíssimas cachoeiras, recebe turistas de todas as regiões. Antes da construção da barragem, havia acesso ao local através do distrito de Serro Azul, durando cerca de 40 minutos até Bonito. Após inundação da área com a construção do reservatório, o percurso, de carro, passou a durar, em média, 1h30min. Esse trecho, por Serro Azul, além de próximo de algumas cachoeiras, era importante pois movimentava o comércio da região, maior e mais organizado na época.

No Relatório de Impacto Ambiental (Rima) da Barragem de Serro Azul, estudo feito por uma equipe multidisciplinar – advogados, arqueólogos, arquitetos e urbanistas, assistentes sociais, biólogos, economistas, engenheiros agrônomos, cartógrafos, civis, de pesca, florestais e químicos, geólogos, geógrafos, meteorologistas e tecnólogos em geoprocessamento – em outubro de 2011 para conhecer o terreno e planejar a construção do empreendimento, consta que muitas casas e famílias precisariam ser retiradas das áreas onde vivem em decorrência da obra da barragem. Além disso, informa, ainda, os impactos que esse povo vai sofrer – e hoje sofre – após essa grande obra, entre eles, efeitos na produção da agricultura de subsistência, nas criações de animais nos quintais das suas casas, cultivo de aves e plantio de frutas e verduras.

Foto: Trechos do Rima (página 19, 35 e 36).
Obstáculos previamente estudados pelos pesquisadores que elaboraram o Rima também incluem a população com baixa escolaridade e capacitação para o trabalho, dificultando o deslocamento dessas pessoas para novas áreas; as ocupações em áreas de risco, próximas às margens do rio e encostas; altos níveis de desemprego na área, especialmente nos períodos entre as safras da cana-de-açúcar; dificuldade para posse de terras, gerando entraves relacionados a desapropriação e realocação da população; altos níveis de migração para as áreas urbanas próximas, entre outras questões importantes.

Os moradores afirmam que o planejamento apresentado pelo Governo do Estado é totalmente diferente da realidade atual que eles vivem. “Eles mostraram para gente na planilha que tinha reflorestamento, os moradores do paredão tinham uma boa moradia em outro lugar, vinha uma empresa para criar emprego para o povo, prometeram, também, ajudar através do turismo, criar projeto de peixe pra comunidade e até hoje nada disso existe”, ressalta Amaro. “Muitos tão sem as terras pra trabalhar, ficaram desempregados e tão por aí. Pra mim não teve nenhum benefício, mas para a população de Palmares teve, já que vão ficar seguros de enchentes”, complementa a aposentada Jovelina Maria da Silva, de 67 anos. Enquanto conversava, não largava a bíblia da mão. Quando questionei qual seria seu destino, ela disse que seguia para a igreja. “Vou pedir pra Deus mudar a vida da gente aqui”, afirmou sorridente.

Foto: Caminho que leva até a barragem de Serro Azul.
Para chegar próximo às comportas da barragem, é preciso passar por uma pequena e estreita ponte de concreto. A sensação ao atravessar é de queda iminente. Embaixo está o Una, que antes era cheio, e hoje tem volume bem reduzido, com muitas plantas aquáticas preenchendo o espaço até as margens. Após atravessar, a estrada de barro se divide em dois caminhos: do lado direito, a casa de dona Josefa Maria; em frente, o pé da barragem.
Foto: Dona Josefa em frente a barragem e na fachada da sua casa.
A placa de perigo é um alerta de que ali é uma área de risco, mas isso não assusta todos os moradores que percorrem o caminho diariamente. Durante as visitas ao local, várias pessoas passaram naquele trecho, seja a pé, a cavalo ou motocicleta. A agricultora Josefa Maria mora com a família exatamente ao lado da barragem e assegura que teme pela insegurança causada pelo reservatório. “A gente não se sente seguro de jeito nenhum. A sorte da gente é que muita gente se preocupou com essa barragem, chegando aos órgãos competentes que vieram aqui e, depois, abriram as duas comportas, aí estamos mais calmos”, alerta a moradora. Outra problemática também afeta quem mora perto do paredão de concreto. “Essa noite mesmo (9 de março) fui dormir na casa da minha filha Maria de Fátima, que mora aqui próximo da Usina, porque eu não estava aguentando o mau cheiro”, conclui. A sensação ao exalar este odor lembra quando deixamos flores descansado no vaso com água durantes dias, mas com um cheiro desagradável muito mais potencializado.
Foto: Placa de perigo inserida no poste próximo ao paredão da barragem.
Apesar desse fator, muitos visitantes e moradores sobem até o caminho que divide a barragem e o reservatório para vislumbrar o bonito cenário, que se tornou ponto turístico na região. Para olhar a barragem por completo, é preciso ir à parte alta do distrito. Após 15 minutos de carro, em uma estrada de barro perigosa, com muitas crateras e sem acostamento, é possível contemplar a linda vista. Um caminho divide os dois lados: a água do reservatório e as paredes de concreto com as comportas.
Foto: O reservatório e o paredão da barragem.

Cheias

Cerca de 11 meses depois da grande enchente que devastou municípios, destruiu lares e afetou milhares de pessoas, mais uma vez Pernambuco e Alagoas foram alvos de cheias, dessa vez em maio de 2011. Apesar de ser em uma proporção inferior a do ano anterior, cerca de 40 municípios foram afetados no Estado, atingindo mais de 100 mil pessoas com as chuvas. Na época, nenhuma barragem que havia sido planejada para conter enchentes na região estava construída, nem mesmo as obras tiveram início.

Novamente os estados de Alagoas e Pernambuco foram atingidos por enchentes. No dia 28 de maio, fortes chuvas causadas por um fluxo de vento vindo do oceano e carregado de ar úmido formaram nuvens carregadas na Costa e na Zona da Mata. Nos dois estados, totalizaram cerca de 40 mil pessoas desalojadas, em 31 municípios.

Apesar de quatro barragens ainda estarem sem previsão de conclusão, a barragem de Serro Azul ajudou bastante os moradores dos municípios vizinhos. Isto porque conseguiu segurar um elevado nível de água, evitando um desastre maior. Se todas estivessem concluídas, absorveriam as águas dos rios Una, Pirangi, Sirinhaém e Panelas, cumprindo o objetivo de conter enchentes.

“Quando vier uma cheia igual a de 2017, aquela que teve aqui, esse paredão estando cheio aí, esse povo aqui vai correr tudinho, vai abandonar as casas”, afirma temerosamente Amaro. Isso porque a proximidade assusta os moradores, que não têm um lugar seguro para onde ir.

Da madrugada do dia 28 de maio até o dia seguinte (29), choveu 212 milímetros no município de Barreiros, na Mata Sul do estado, ocasionando uma enchente que afetou mais de 300 famílias, além de deslizamento de barreiras e queda de árvores. Choveu 75% do esperado para todo o mês de maio e os desastres não foram maiores porque a barragem de Serro Azul acumulou uma grande quantidade de água no reservatório, preenchendo 20% do seu limite total.

A barragem

O planejamento da construção da Barragem de Serro Azul foi em conjunto com a de Panelas II, em Cupira; Gatos, em Lagoa dos Gatos; Igarapeba, em São Benedito do Sul; e Barra de Guabiraba, no município que leva o mesmo nome. De acordo a previsão das obras, duas barragens – Igarapeba e Serro Azul – seriam entregues em 2014 e as outras três em 2013. Atualmente, apenas uma foi construída, como já citado acima.

Com base na avaliação da Agência Nacional de Águas (ANA), a barragem de Serro Azul está com DPA e CRI altos. E a insegurança dos moradores permanece. Morar próximo ao paredão é inevitável, já não há um local seguro nas proximidades e, além de outros fatores externos, a falta de condições financeiras impede o deslocamento para novas regiões.

Enquanto as comportas da barragem estão abertas, o sossego aquieta o coração dos moradores. Mas elas não vão continuar assim por muito tempo. “Tá todo mundo aqui com muito medo. Já pensei em sair daqui. Depois que abriram as comportas a gente aliviou mais um pouco. Mas tão dizendo que vão fechar, que vão precisar de água para tirar para Caruaru”, explica o eletricista Mário.

“Essa barragem não vai ficar com as válvulas abertas, elas vão fechar pra levar água para outras cidades. O Crea-PE veio e viu que não tem nem sirene pra população ficar alerta se por acaso acontecer algum desastre na barragem. Nós estamos com muito medo. O que eu queria pedir é que olhassem pra nós. Somos humanos. Não esperem acontecer o pior pra ajudar ”, pede Jovelina Maria.

Em 12 de fevereiro, uma equipe multidisciplinar – advogado, geólogos, engenheiros agrônomos, civis, florestais e de minas e uma jornalista – do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Pernambuco (Crea-PE), realizou uma vistoria técnica da barragem e lançou uma nota de esclarecimento “com base no que foi visto”. De acordo com a nota: “A barragem de Concreto Compactado a Rolo (CCR) inspecionada não apresenta nenhum sintoma de deslocamentos relativos entre partes da estrutura, esmagamento e esborcinamento dos concretos entre as juntas e fissuras existentes, que indique problemas estruturais, que possam levar a um colapso (…) Para que uma barragem desse tipo venha colapsar, muitos sintomas devem surgir antes de ser classificada como insegura e nenhum desses sintomas foi evidenciado na vistoria realizada (…) Por outro lado, uma barragem desse porte deve ser constantemente monitorada através de instrumentos específicos, para que se detecte algum problema de movimentação, antes mesmo que sintomas visíveis venham a surgir e que ações sejam tomadas para que o problema não evolua. (…) A água da barragem apresenta sinais de eutrofização, um odor muito forte, característico de uma quantidade excessiva de matéria orgânica (…) Vale ressaltar que a comunidade que reside em área que sofre qualquer tipo de impacto deve ser capacitada e treinada para qualquer situação de emergência, evitando pânico. Nesse sentido é importante, à população, informação quanto ao nível da vazão da água da barragem. Moradores cientes dos procedimentos adotados na barragem e da sua finalidade, sentem-se mais seguros. Não foi verificada a existência de sirenes de alerta, rota de fuga da população em situação de risco, monitoramento e projeto de recuperação das áreas degradadas.”.

Foto: Placa com informações sobre a Adutora de Serro Azul.
O projeto Adutora Serro Azul visa acumular água no reservatório, que tem capacidade de armazenar 303 milhões de m³, e distribuí-la para o agreste pernambucano, abrangendo os municípios de Belo Jardim, Bezerros, Caruaru, Gravatá, Sanharó, Santa Cruz do Capibaribe, São Bento do Una, São Caetano, Tacaimbó e Toritama. A ideia visa manter a sustentabilidade hídrica destes municípios, que sofrem com as secas cíclicas. Serão cerca de 1,5 milhões de pessoas beneficiadas com esse empreendimento, com 58 quilômetros de tubulação transportando 500 litros por segundo até a Adutora do Agreste, localizada entre os municípios de Caruaru e Bezerros. Para que isso aconteça, é preciso acumular água através do fechamento das comportas.

As obras tiveram início no 2º semestre de 2018, com previsão de conclusão em cerca de dezoito meses. O Governo de Pernambuco está investindo, ao total, R$200 milhões, originados de um empréstimo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), de acordo com a Compesa.

População Rural de Palmares

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010.

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datas das visitas

março

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“Serro azul representa tudo pra mim. Foi aqui que nasci e me criei, tô criando meus filhos e isso aqui era um pedaço do céu. Tinha muitas cachoeiras, muita água, muita agricultura e hoje a gente se sente em uma situação como essa, sem poder fazer nada e sem nenhuma expectativa de vida”

Amaro Miguel

Presidente da Amcusa