De olho nas barragens
Uma tragédia no dia 25 de janeiro de 2019 abalou o Brasil. A barragem da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, Minas Gerais, rompeu provocando 237 mortes identificadas e deixando 33 pessoas desaparecidas, de acordo com informações atuais publicadas no G1. Doze milhões de metros cúbicos de rejeitos vazados da barragem de responsabilidade da multinacional Vale devastaram uma área equivalente a 377 campos de futebol no maior desastre ambiental do Brasil. O horror de Brumadinho reacendeu a memória do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG), que provocou 19 mortes em 5 de novembro de 2015, quando 43,7 milhões de rejeitos vazaram da barragem operada pela mineradora Samarco. A comoção pelos dois episódios afetou especialmente as pessoas que moram ou trabalham no entorno dessas barragens e alertou os representantes políticos e a sociedade civil sobre a necessidade de fiscalizações nessas estruturas construídas em todo o país.
Saindo do cenário de tragédias nacionais para o nordestino, em junho de 2010, Pernambuco e Alagoas foram afetados por enchentes que causaram a destruição de aproximadamente 80 municípios e deixaram milhares de desabrigados e desalojados, provocando ainda 56 mortes nos dois estados. Menos de um ano depois, em maio de 2011, outra enchente tomou conta da região, destruindo o pouco que restou e que foi reconstruído pelos moradores. Já em 2017, no final de abril, os desastres voltaram a acontecer.
Ainda em 2010, o Governo de Pernambuco, junto ao Governo Federal, planejou a construção de cinco barragens para contenção de enchentes no estado, visando garantir a segurança dos moradores e dos municípios da região. Barra de Guabiraba, Cupira, Lagoa dos Gatos, São Benedito do Sul e Palmares foram os locais escolhidos para a construção das barragens de Barra de Guabiraba, Panelas II, Gatos, Igarapeba e Serro Azul, respectivamente. Cerca de nove anos depois, apenas uma barragem foi construída, a de Serro Azul, em Palmares. Todas deveriam estar concluídas e em funcionamento até o final de 2014, mas a única acabada foi entregue um mês antes da enchente de 2017, em maio.
O medo de novos acidentes com rompimentos de barragens, tão essenciais para conter os danos das chuvas, ficou ainda maior com a publicação da Agência Nacional de Águas (ANA), em 29 de janeiro deste ano, que divulgou uma lista de barragens que terão fiscalização priorizada em todo o Brasil por fatores de risco. Ao todo são 3.991 barragens com Dano Potencial Associado (DPA) ou Categoria de Risco (CRI) baixo, médio, alto e não classificado – aquelas que não têm todas as informações necessárias sobre o empreendimento – em todo o país. Em Pernambuco, 137 barragens são classificadas nesta listagem, que abrange o principal uso da barragem, o DPA e o CRI (baixo, médio e alto), além de outras informações técnicas sobre as obras. Desse total, cerca de 60 barragens estão com ambos os critérios classificados como altos.
Infográfico: Municípios com barragens classificadas em alto CRI e DPA, em Pernambuco.
Sobre o uso de barragens em Pernambuco, elas são distribuídas em: abastecimento de água, combate às secas, irrigação, regularização de vazões, defesa contra inundações, dessedentação animal, hidrelétrica, além das que são classificadas como ‘outras’ e as sobre as quais não se tem informações. São distribuídas entre 13 empreendedores (órgãos responsáveis pela barragem): Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa), Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de Pernambuco, Ministério da Integração Nacional (MI), Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), Pedra Furada Energia S/A, Município de Caetés, Município de Iati, Usina Serra Grande S/A, Usina São José S/A, Pernambuco Participações e Investimentos S/A (Perpart) e Secretaria de Agricultura e Reforma Agrária (Sara).
Em 20 de setembro de 2010 foi criada a Lei nº 12.334, que estabelece a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), abrangendo todas voltadas “a acumulação de água para quaisquer usos, à disposição final ou temporária de rejeitos e à acumulação de resíduos industriais”, além de criar o Sistema Nacional de Informações sobre Segurança das Barragens (SNISB), com o objetivo principal de garantir fiscalizações a essas obras, manter a segurança e preservar as barragens em boas condições para uso. A Lei foi criada após as enchentes em Pernambuco e Alagoas, em 2010, e impactou a vida de milhares de moradores da região.
População pernambucana
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2018.
Fonte: PNSB.
Sobre artigo 3, que contém os objetivos da PNSB, três incisos se destacam:
“I – garantir a observância de padrões de segurança de barragens de maneira a reduzir a possibilidade de acidente e suas consequências”
“III – promover o monitoramento e o acompanhamento das ações de segurança empregadas pelos responsáveis por barragens”
“VII – fomentar a cultura de segurança de barragens e gestão de riscos”.
Já o artigo 8, que trata sobre o Plano de Segurança da Barragem (PSB), esclarece que as informações desses empreendimentos devem ser precisas e completas para que ela seja identificada corretamente e, posteriormente, monitorada pelas equipes de fiscalização. Para que funcione, é preciso saber a identificação do empreendedor; os dados técnicos referentes à implantação do empreendimento, inclusive no caso daqueles construídos antes da Lei; a estrutura organizacional e qualificação técnica dos profissionais da equipe de segurança da barragem; manuais de procedimentos dos roteiros de inspeções de segurança e de monitoramento e relatórios de segurança da barragem; regra operacional dos dispositivos de descarga da barragem; indicação da área do entorno das instalações e seus respectivos acessos; Plano de Ação de Emergência (PAE), quando exigido; e revisões periódicas de segurança.
O PAE é elaborado pela agência que fiscalizou a barragem, de acordo com o nível de CRI e DPA, e visa estabelecer as ações que deverão ser executadas pelo empreendedor da barragem em situações de emergência, devendo constar as seguintes informações presentes no artigo 12 da PNSB:
I – identificação e análise das possíveis situações de emergência;
II – procedimentos para identificação e notificação de mau funcionamento ou de condições potenciais de ruptura da barragem;
III – procedimentos preventivos e corretivos a serem adotados em situações de emergência, com indicação do responsável pela ação;
IV – estratégia e meio de divulgação e alerta para as comunidades potencialmente afetadas em situação de emergência.
Ainda de acordo com o documento que explica as diretrizes desse Plano, no anexo abaixo, constam informações sobre ação de sensibilização da população. Entre as indicações, estão a educação e o treino dos moradores que residem próximos à barragem para serem colocadas em prática diante de risco de enchentes; conhecer os sinais de alerta inseridos na área da barragem para alertar a população e ter um local de refúgio, por exemplo.
Imagens: Figuras do relatório do PAE (página 47 e 48) sobre como a população deve agir diante do risco de rompimento da barragem.
A reportagem pôde observar, durante as visitas realizadas em algumas barragens do Estado, que a população não tem essas informações, aumentando o risco de quem mora nas sombras das barragens. Como está apresentado na reportagem sobre a barragem de Serro Azul, em Palmares, durante a visita do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Pernambuco (Crea-PE), “não foi verificada a existência de sirenes de alerta, rota de fuga da população em situação de risco, monitoramento e projeto de recuperação das áreas degradadas.”.
O coordenador estadual do Dnocs em Pernambuco, Marcos Rueda, explica que a barragem de Jucazinho, localizada no município de Surubim, é a primeira obra a ser implementada o PAE. “Foi identificado que Jucazinho tinha risco desde 2013 e fomos pedindo ao Ministério e ao Governo verba para manutenção, mas não era tomada nenhuma providência. Quando assumi aqui, sentei com os órgãos responsáveis e buscamos a liberação da recuperação desta barragem. Iniciou uma obra emergencial para fazer o paredão dela, que estava com infiltrações, com um custo de R$ 8,5 milhões. A obra está sendo feita e será entregue em novembro. Estamos colocando as sirenes e medindo sua potência; o gerador para ficar na casa de monitoramento, já que não pode faltar energia; uma caminhonete; lancha, se precisar; e placas em cada zona de afugentamento, que são os municípios que serão atingidos se a barragem romper”, destaca.
Jucazinho estava classificada como alto risco de DPA e CRI. É o segundo maior reservatório de água do estado, com 327 milhões de metros cúbicos de água, perdendo para a barragem Engenheiro Francisco Sabóia, também chamada de Poço da Cruz, instalada em Ibimirim, no Sertão pernambucano, com capacidade para armazenar 504 milhões de metros cúbicos de água.
A Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec), responsável pelo Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (SINPDEC), divulgou, em setembro de 2016, uma cartilha com orientações para apoio à elaboração de planos de contingência municipais para barragens. Com a intenção similar ao PAE, tem o caráter de expor para os municípios e a sociedade sobre os cuidados necessários para aqueles que vivem próximos a essas obras.
O Plano de Contingência é um documento elaborado pela Defesa Civil para agir diante de cenários de risco. Para elaborá-lo, é preciso definir o sistema de monitoramento, alerta e de alarme, estabelecer rotas de fuga e pontos de encontro, além do plano de comunicação à autoridades e serviços de emergência. Este cenário de risco abrange a área de impacto potencial, onde deve-se ter conhecimento da população vulnerável, aquela que será atingida se houver algum rompimento da barragem. Deve, ainda, ter uma sala de monitoramento em área próxima a barragem para observação da condição e estabilidade da obra, equipamentos para alarmar essa população, como sirenes, alternativas fontes de energia, iluminação, entre outros. Somado a isso, deve haver, ainda, ações voltadas para o resgate e o encaminhamento a abrigos e hospitais. As páginas 11 até 18 do documento explicam com detalhes e ilustra (abaixo) como devem ser aplicadas essas informações.
Existe, ainda, o Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (SNISB), como já citado. Trata-se de um portal com os dados de todas as barragens, onde os órgãos fiscalizadores de segurança são os responsáveis por atualizar esse material. Em Pernambuco, a encarregada é a Agência Nacional de Águas e Clima (Apac). Seu objetivo é promover o conhecimento, pelos responsáveis, das condições de segurança das barragens em todo o país, através de informações coletadas, armazenadas e recuperadas em qualquer estado – construção, operação e até desativadas, nos seus mais múltiplos usos.
A Apac foi criada em 26 de março de 2010, por meio da Lei Estadual nº 14.028, com seu objetivo exposto no artigo 2: “A Apac tem por finalidade executar a Política Estadual de Recursos Hídricos e regular o uso da água, no âmbito dos recursos hídricos estaduais e dos federais nos termos em que lhe forem delegados, bem como realizar monitoramento hidrometeorológico e previsões de tempo e clima no Estado”.
Fazer o monitoramento eficaz da segurança das barragens, no entanto, esbarra em algumas dificuldades apontadas pelo analista de Recursos Hídricos e especialista em Hidrogeologia, Ricardo Neto Valente. “Na criação da Apac não havia uma previsão para que a agência fosse a fiscalizadora das barragens no estado. Uma pessoa só ficava tomando conta do setor. Hoje estamos com uma equipe de três pessoas – dois engenheiros civis e um engenheiro de minas, além da ajuda do gerente e da diretora que compõe”, aponta o analista.
Em 2018, a Apac fiscalizou 30 barragens. A equipe, no final do ano passado, já havia planejado um calendário de fiscalizações para 2019. Em função do cadastro de barragens e do que foi enviado para a ANA, criou-se uma demanda, através do Ministério da Integração, de se fiscalizar todas as barragens neste ano, mas o órgão não tem condições de realizar essa atividade pela pequena equipe de funcionários para realizar essas atividades. “Hoje temos um cadastro de barragens e mantemos atualizados com as informações sobre essas obras. Tentamos atuar primeiramente na identificação das barragens, existe, ainda, um problema de fazer com que os empreendedores se responsabilizem por suas barragens. Também existe a dificuldade de formalizar o empreendedor da barragem. Nós fiscalizamos, mandamos ofício, solicitamos, cobramos, eles negam, a gente autua e por aí vai. A outra problemática na fiscalização é ir in loco nas barragens. Desde 2012/2013 estamos fazendo isso mas, como era apenas uma pessoa, era impossível dar conta dessas fiscalizações, nós temos 450 barragens cadastradas , outro número indefinido de barragens que não temos controle”, explica Ricardo.
Apesar da Apac ter o dever de vistoriar as barragens, o empreendedor também precisa por em prática esse papel. “Existe uma diferença entre as fiscalizações que a gente faz e a que a Lei pede. A Apac faz uma inspeção visual só que no caráter apenas de vistoriar a barragem. A gente identifica os problemas mais urgentes e informa ao empreendedor da barragem para que tome as providências necessárias”, complementa o especialista.
Ele explica a importância do entendimento sobre o Dano Potencial Associado e o Critério de Risco para avaliar as condições de funcionamento das barragens. “Mesmo as barragens que hoje têm DPA baixo, tendem a se tornarem altos com o passar do tempo, porque o pessoal vai se ocupando e, através da ocupação do solo, o pessoal vai se alocando dentro da mancha de inundação da barragem. E, se eu não tiver dados da construção da barragem, ela já atinge pontuação máxima no CRI. O mais importante, em termos de rompimento, seria a manutenção dela. Em função desses critérios, as barragens já começam com pontuação quatro. Se tem pessoas morando na área, vegetação ou mata, esse critério vai aumentando. Se chegar a 16 pontos, ela passa a DPA alto”, destaca.
As notícias falsas também perturbam o funcionamento do órgão. Ricardo ressaltou que, quando a situação das barragens ficou alarmante, vazaram um vídeo da barragem de Serro Azul de dois anos atrás informando que eram nos dias de hoje. Isso gerou uma série de problemas que eles conseguiram esclarecer a tempo, apesar de que a população, assustada, não se convenceu. “Já foi o pessoal da Seinfra, do Crea-PE e eles dizem que não há risco. Agora é bom entender que uma coisa é critério de risco, outra é rompimento da barragem. Existe na legislação o nível de perigo, tanto da anomalia, como da barragem como um todo. Por exemplo, o corrimão da escadaria da barragem tá enferrujado e vai quebrar. Qual é o impacto na barragem em relação ao risco de rompimento? O fato do corrimão estar solto não apresenta perigo nenhum para estrutura da barragem. O nível de perigo vai dizer se aquele dano é normal; se precisa de manutenção e monitoramento, sem perigo; se deve monitorar e entrar em ação, pois representa perigo a estrutura da barragem; e se apresenta perigo e é iminente de ruptura”, pontua.
Para acompanhar e cobrar dos órgãos competentes a manutenção e fiscalização das barragens em Pernambuco, um grupo de deputados estaduais instalou, na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), uma Comissão Especial para acompanhar esses casos. Os responsáveis são os deputados Antônio Moraes (PP), Tony Gel (MDB) e Romero Sales Filho (PTB) e visam elaborar leis para garantir a segurança dessas obras e da população, evitando desastres como os que aconteceram em Brumadinho (MG), no início deste ano, e em Mariana (MG), em 2015, ambos por causa de barragens.
“O sentimento nosso é que realmente a gente não tinha nada, não tinha manutenção, vistoria, plano de fuga. Verificamos que existem barragens sem dono, causando risco às populações que vivem embaixo dessas obras. Nossa Comissão deve ir até setembro. Nós já fomos em sete barragens e depois de cada visita nós fazemos uma reunião administrativa. Se preciso, chamamos o Dnocs, a Apac e a Compesa para participar dessas reuniões e tirar dúvidas”, pontua o deputado Antônio Moraes.
“A gente tem um problema grave que são mais de 130 barragens sem dono. A gente vai fazer uma legislação onde o Governo seja obrigado a assumir essas barragens. Vamos fazê-la no final da Comissão. É preocupante porque nós não temos nem a questão de evacuação para garantir a segurança dos moradores”, complementa o deputado.