Barragem vira área de lazer e sustento
“Às vezes eu venho pelo lazer. Aqui você vê que é uma área boa e um lugar bom de morar, né?”, comenta a dona de casa Poliana Magda, de 26 anos. Ela é moradora do bairro de Malvinas, em Jaboatão dos Guararapes, e sempre visita os tios, que vivem nas margens do reservatório da barragem Duas Unas, localizada entre Jaboatão e Moreno, na Região Metropolitana do Recife (RMR).
Saímos da capital pernambucana e pegamos a BR-232 em direção à barragem, seguindo as orientações do Waze, aplicativo de navegação por satélite. Três rotas apontavam a localização, nenhuma delas de fácil acesso. A primeira levava a um muro alto de tijolos, com cerca elétrica e portão de alumínio. Apesar de não ter placa informando, uma rápida pesquisa no Google Maps indicou que ali ficava o Sítio Golden Luna. Por coincidência, um dos visitantes saía do local e informou à reportagem que a entrada realmente dava acesso ao reservatório da barragem, mas que era restrita aos hóspedes que se acomodam por lá. De longe, era possível avistar a grande quantidade de água no local.
De volta à BR-232, a segunda rota levava a um grande portão de ferro pintado na cor azul. A entrada permite o acesso às proximidades do paredão. A Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) é a mantenedora da barragem, que funciona como adutora para os municípios da RMR, mas novamente não foi possível entrar por este caminho, restrito para pessoas autorizadas, como informou o vigilante do local. O reservatório desta barragem é o menor em acúmulo para abastecimento, diferentemente dos reservatórios de Botafogo, em Igarassu; Pirapama, no Cabo de Santo Agostinho; e Tapacurá, em São Lourenço da Mata, que armazenam e distribuem em maior quantidade água para a população.

Foto: Paredão da barragem de Duas Unas visto de longe, na BR-232.
Mais dez minutos de trecho pela BR-232 e o GPS – Sistema de Posicionamento Global – orientou a seguir a próxima rota, entre os municípios de Moreno e Jaboatão, por uma estrada de barro esburacada, com poucas casas – a maioria de portas fechadas, alguns animais soltos, muitas árvores. Do lado direito, estava a água do reservatório de Duas Unas. O lugar era simples e encantador. Lá informaram que o local era chamado de sítio Manoel 40, mas não souberam dizer a história por trás desse nome. Algumas casas tinham a cerca improvisada, com arame farpado e madeira. Apesar de ser um método de segurança, o ambiente aparentemente não apresentava nenhum risco. Também não funcionava sinal de celular, impedindo o contato com a tecnologia e avançando com a natureza – já modificada – ali presente.

A barragem, construída no final da década de 80, tem capacidade para armazenar mais de 23 milhões de m³ de água e faz parte da bacia hidrográfica do Rio Jaboatão, tendo como principal afluente o rio Duas Unas, que nasce em Moreno, próximo às margens da BR-232. Quando entra nos limites do município de Jaboatão, deságua no reservatório da barragem de Duas Unas.
O grupo de bacias de pequenos rios litorâneos 2 (GL2) tem a rede hidrográfica basicamente composta pelos rios Jaboatão e Pirapama, junto com seus afluentes. Abrange nove municípios: Cabo de Santo Agostinho e Jaboatão dos Guararapes (totalmente inseridos), Moreno (sede no GL2), Escada, Pombos, Ipojuca, Recife, São Lourenço da Mata e Vitória de Santo Antão (parcialmente incluídos).
Além de ser importante para a distribuição de água na RMR, este rio é marcado negativamente por receber resíduos domésticos, industriais e agro-industriais, afetando a qualidade da água. Além disso, há o desmatamento das encostas das margens, onde a população faz o plantio de cana-de-açúcar, na zona rural, e constrói moradias para sobreviver.
O grande lago, que de uma margem nem se vê o outro lado, serve como lugar de lazer e fonte de renda para a população local e vizinha. Chama a atenção, em meio à humildade da área, barcos de passeio nas margens. Além deles, os de pesca também ficam ancorados, denunciando que o reservatório também é fonte de sustento para as famílias do entorno. Na “beira da água”, muito capim, destacando o verde no cenário rural.
Próximo ao reservatório, foi construído o condomínio de luxo Alphaville Pernambuco, também na BR-232, no bairro Manassu – Jaboatão, nas margens da represa Duas Unas. Pela proximidade, também é conhecido pelos moradores da região como Alphaville Duas Unas. O terreno pertenceu anteriormente aos Engenhos Camaçari, Corvetas e Goiabeira e hoje é ocupado também pelo condomínio Alphaville Pernambuco 2.
Com base na avaliação da Agência Nacional de Águas (ANA), essa barragem está classificada com Categoria de Risco (CRI) e Dano Potencial Associado (DPA) altos. Poliana frequenta e trabalha alguns dias no bar do tio, Benedito, às margens do reservatório. Lá também é onde a família se reúne para almoços e aniversários, comuns entre seus parentes. No bar vendem petiscos, bebidas alcoólicas, guloseimas e salgados. Durante o tempo que a reportagem esteve no local, o forró e o arrocha eram as músicas tocadas na pequena caixa de som.
Ela vem acompanhando algumas reportagens sobre o risco das barragens em todo país e anda assustada com as informações. “Muita gente vem pescar aqui e vive da pesca. Então, essa barragem traz muitos benefícios. Mas me assusta saber que ela está sendo classificada com risco”, explica Poliana, que pensa logo no bairro onde mora. “Há mais de 10 anos ouço que a barragem vai estourar. Tenho mais medo no inverno, quando ela está cheia, logo agora no mês de junho”, complementa.

Com base na matéria publicada na Folha de Pernambuco, em 30 de janeiro deste ano, os moradores do entorno de Duas Unas afirmam que a última manutenção na barragem aconteceu há cerca de cinco anos e que nunca receberam nenhuma orientação sobre como agir diante de emergências. “Nunca vi ninguém vindo aqui fazer nenhuma fiscalização”, afirma Gléber Pereira, 37 anos, morador da vila Cardeal e Silva, no bairro de Areias, no Recife. Ele trabalha junto com o colega Pedro Leônidas de Almeida Silva, que também mora no mesmo bairro que ele, na reforma da residência do irmão de Pedro, às margens do reservatório Duas Unas. “Faz uns dois anos que a gente tá trabalhando aqui já”, respondem os pedreiros. “A gente vem na segunda-feira, vai de 15 em 15 dias para casa, uma vez por mês. Venho pra cá só pra trabalhar mesmo”, explica Gléber.
“Nunca vi ninguém fiscalizar esse trecho da barragem”, reafirma Poliana. A dona de casa também garante que quase todos os invernos as águas acumuladas transbordam pelo paredão da barragem, apavorando os habitantes de Jaboatão. “Quando for o inverno pesado e chover, quando você passar na BR vai ver a água escorrendo do paredão. A Compesa solta água para diminuir o volume e não estourar”, explica a dona de casa.
Após o rompimento da barragem de Brumadinho (MG), a população ficou mais alerta. “Muitas pessoas ficam com medo, né? E, se ela estourar e acontecer essa tragédia toda que aconteceu lá?”, lembra Gléber. “Pra mim acho que ela é perigosa. Para quem mora aqui perto, acho que ninguém tem medo não, agora pra quem mora lá perto do paredão, próximo a Jaboatão, aí eu não sei”, completa Pedro Silva.

A casa do irmão de Léo, como prefere ser chamado, é um primeiro andar com vista privilegiada para o lago. Quando a reportagem se aproximou da residência, os dois pedreiros estavam capinando o terreno. Na hora do descanso, descem para o bar ao lado e se divertem enquanto conversam e bebem, interagindo com os outros visitantes que vão conhecer a região. Ainda no terreno da casa, encontramos alguns entulhos como restos de um barco e a carcaça de um carro.
De acordo com a dissertação da pós-graduação em Geografia de Kenya Viégas da Silva, aluna da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), intitulada A Redefinição de Espaços Periurbanos pelo Investimento Imobiliário Privado dos Condomínios Fechados na Porção Oeste da Região Metropolitana do Recife, as ocupações no entorno da barragem Duas Unas são irregulares, já que ferem a determinação legal de que qualquer construção no entorno de 100 metros de distância da lagoa da barragem não é autorizada por estar na Área de Preservação Permanente (APP). Conforme o artigo 2º do Código Florestal, APP é uma “área protegida (…) coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”.
O Plano Diretor de Jaboatão dos Guararapes, no artigo 10, inciso I, afirma que são diretrizes gerais para a conservação do Patrimônio Ambiental: “a proteção, com áreas verdes, das margens e leitos expandidos de rios e lagoas, proibindo a construção, nessas áreas, de imóveis destinados tanto ao uso residencial como industrial, comercial e serviços”. A reportagem verificou a região e afirma que as constatações da estudante acima citada são verídicas, mas que os moradores não sabem sobre essa proibição e também não são “vistos” pelo poder público. No dia visitado, os habitantes do sítio Manoel 40 afirmaram que havia apenas duas famílias que residiam fixamente no local, enquanto as casas vizinhas pertenciam a outros que visitavam normalmente aos finais de semana.

Foto: Fachada de uma das casas do vilarejo.
“Já vi a Compesa chegar aqui, olhar e ir embora. Chega em cada carrão aí, só faz olhar. Quando não faz isso, vem pra dar multa pro povo aqui, que não pode também, né? A gente já paga os impostos da gente tudo direitinho. O que querem mais?”, questiona Pedro.
População Rural de Jaboatão
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010.
Localização
data da visita
maio
Foto: Plantas no entorno do reservatório Duas Unas.