População sofre com o abandono das obras da barragem que deveria promover segurança na região
O Sistema de Controle de Cheias da Bacia do Rio Una é composto pelas barragens de Gatos, em Lagoa dos Gatos; Igarabepa, em São Benedito do Sul; Panelas II, em Cupira; e Serro Azul, em Palmares. A barragem de Barra de Guabiraba, no município que leva o mesmo nome, também faz parte do projeto, mas está no curso do Rio Sirinhaém. Com exceção de Serro Azul, todas estão abandonadas e sem previsão de término de suas obras.

Saímos da capital em direção a barragem de Panelas II, no agreste pernambucano, planejada para contenção de enchentes na região. São aproximadamente 170 quilômetros até lá. Depois do município de Catende, o caminho lembra aqueles de desenho animado: cheio de curvas, sem iluminação e acostamento. Seguimos com muita chuva até o município de Belém de Maria e, de lá, pegamos a BR-123 por cerca de 10 km com muitas subidas e buracos na estrada de barro que leva até Cupira. O sacolejo de todo o caminho impede até o cochilo que combina com a viagem.
“No inverno essa pista fica muito ruim, o bicho pega. A gente só passa de pé ou de moto”, afirma o ex-agricultor Gilson Moraes, de 45 anos, que mora na região desde 2006. “Agora há pouco acabou de passar aqui um ônibus do Recife. Quando tá chovendo muito, que faz lama, esse ônibus não passa. O barro fica liso e ele não consegue nem subir”, explica o agricultor José Severino da Silva. “Quando a gente sai daqui para fazer feira vai e fica no meio do caminho, não tem como passar. No inverno mesmo a gente não passa não, tem que passar por Agrestina e subir. Se tiver uma emergência não tem nem como prestar socorro”, comenta a dona de casa Maria Aparecida, moradora do município desde que nasceu, há 53 anos.
Ao chegar nos limites do município de Cupira, avistamos a barragem, atualmente 47% concluída, segundo o Governo de Pernambuco. Ela fica em uma área conhecida como Chã das Panelas, na zona rural. Não há como negar que o ambiente está abandonado. Muitas árvores, plantas e mato crescido fazem parte do terreno. Lá também tem algumas construções, uma delas até similar a uma casa, além de materiais de construção deixados no local, mas ninguém parece morar na sombra da barragem de Panelas II. Com as fortes chuvas no dia em que visitamos, a lama tornou o caminho de barro ainda mais escorregadio e perigoso.
Foto: Caminho que leva até o paredão da barragem.
No topo do paredão, é possível ter uma bela vista do terreno que, se tivesse sido concluído, seria a barragem. O lado do reservatório, onde passa o rio, está repleto de plantas aquáticas e o outro lado, onde a água escorre, tomado por mato e pedras. A comporta estava aberta, escorrendo o pouco da água que vinha do lado oposto, seguindo o caminho do riacho. Em cima do paredão, mais ferro e uma visão completa do descaso com a população.
Gilson Moraes mora próximo ao portão de entrada para o acesso a barragem. De dentro da sua casa, que também funciona como bar e venda de doces, salgados e guloseimas, viu todo o processo de construção da obra de perto e sente pela falta de água na região. “Ninguém na minha família foi afetado pelas enchentes dos anos passados, mas seria muito bom a barragem pronta pra gente ter água potável. Sem água como é que a gente vai viver?”, diz o morador que precisou fazer uma cisterna temporária no terraço da sua casa para ter acesso à água potável. Ele mora a cerca de 700 metros da obra, vive com a mulher e seus dois filhos. Enquanto a reportagem esteve no local, muitos vizinhos passaram por lá para beber e jogar conversa fora.
O agricultor José Severino é vizinho de Gilson e mora no município desde que nasceu, há 52 anos. Com o início das construções, precisou sair de sua residência, localizada no território onde seria construída a barragem, e se mudar para outro local. Essa migração prejudicou não só a moradia, mas também o sustento. “Tive que pedir permissão ao Estado, na época, para ficar trabalhando no terreno, porque vivo de agricultura. A partir do momento que aconteceram as desapropriações fiquei sem lugar para plantar. Lá onde eu morava a gente tinha terra boa e água pra trabalhar, diferente de hoje. Eu me considero no prejuízo”, ressalta, com um olhar entristecido.

Foto: O mato crescido preenche todo o terreno.
Atualmente, ele mora em uma rua acima da área onde seria construída a barragem, na parte alta, não oferecendo risco de enchentes para os moradores do vilarejo. “Agora só posso plantar lavoura que colha logo e tenho que ficar em alerta porque na hora que começar a obra tem que tirar o gado do local . Aí vou ter que ficar parado, ficar sem criar e sem trabalhar”, complementa, assustado com o futuro.
Em estudo feito para reconhecimento do terreno, o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) identificou vários fatores de impacto no meio físico da região com a realização da obra. Entre eles, por exemplo, a alteração na qualidade do solo, na qualidade e no nível das águas subterrâneas e na qualidade do ar. Essas condições impactam não só José Severino, mas grande parcela da população que utilizava o local como garantia de sobrevivência, através da agricultura.
Ainda com base no Rima, a barragem do Rio Panelas, afluente do Pirangi, que deságua no Una – Panelas II – teria capacidade para 17 milhões de m³ de água, com previsão de custo de R$35 milhões. Já em publicação do site Governo Federal, em 13 de maio de 2011, consta que a construção total será de R$50 milhões, sendo R$11,5 milhões do Governo do Estado. A LENC – Laboratório de Engenharia e Consultoria LTDA é a empresa responsável pela execução do trabalho na barragem, que teria uma área alagada de 324,96 hectares.
A Controladoria Regional da União no Estado de Pernambuco fez uma auditoria na Secretaria de Infraestrutura Hídrica (SIH) referente à construção de Panelas II. Os estudos foram realizados entre 17 de maio e 25 de outubro de 2017 e identificaram “prejuízo de R$ 2.650.680,07, devido a superfaturamento e pagamentos indevidos. (…) Paralisação das obras devido a atraso na liberação de recursos federais. (…) Também foram verificados atrasos causados por deficiências nos estudos preliminares e projeto básico, sem a adoção de providências tempestivas para a resolução por parte do Governo do Estado de Pernambuco”. O Ministério da Integração Nacional deveria repassar R$ 38.460.000,00 para construção da barragem, mas não o fez.
Gatos também é sinônimo de abandono

Foto: Portão improvisado para proteger o caminho que leva até a barragem de Gatos.
A situação de abandono é similar em Gatos, localizada entre Lagoa dos Gatos e Belém de Maria. A obra foi abandonada após cerca de 25% do seu desenvolvimento. Para chegar ao terreno, pegamos uma pequena estrada de barro, com muita lama, que termina defronte a um portão de entrada improvisado com madeira e arame farpado. Por trás está o caminho, já tomado por muitas plantas, que chega na construção da barragem. O acesso ao local é restrito e o vigilante, que preferiu não se identificar, afirma ter recebido ordens para apenas pessoas autorizadas pelo Governo terem acesso a construção da barragem.

Foto: Caminho que leva até a barragem de Gatos.
Após 10 minutos a pé em uma estrada lamacenta e improvisada, em meio a muitas árvores e capim crescido, a obra exibe sinais de total negligência. Restos de ferro, areia e britas estão espalhados em parte do terreno. O paredão da barragem começou a ser erguido, mas assim ficou até hoje. O cuidador do local comentou que a obra está totalmente parada há cinco anos e também não tem nenhuma informação sobre se será retomada.
No local que deveria abrigar um reservatório com capacidade para armazenar 6,3 milhões de m³ de água, existem apenas paredes de concreto. A menor tem, em média, 3 metros. Outra com um pouco mais que isso e uma terceira bem maior. O local onde passaria a água do reservatório, similar a um túnel, também está abandonado. O rio está cheio de plantas aquáticas e corre, em pequena quantidade, e em meio às pedras, seguindo seu rumo.
A Barragem de Gatos está orçada em R$15 milhões. Panelas II e Gatos ficam no rio Panelas e riacho de Gatos, afluentes do Rio Pirangi, tributário da bacia do Una. A empresa responsável pelo empreendimento é a mesma de Panelas II, a LENC.
De acordo com o Rima, ambas as barragens têm, em seu projeto, um sistema de “tomada d’água e descarga de fundo”, onde haverá uma passagem na barragem que permitirá que o rio continue seu fluxo naturalmente ao longo do ano. O vigilante afirma que, em 2017, a enchente na região levou muitos materiais e subiu a um nível que cobriria, e muito, nossas cabeças. Nos arredores da obra há poucas casas, mas no dia que estivemos por lá, não havia ninguém no local.
Como a barragem citada anteriormente, Gatos também surgiu da necessidade de evitar novos desastres, como as enchentes dos últimos anos, e proporcionar segurança e qualidade de vida para os moradores da região. A previsão era que as duas barragens ficassem prontas até o final de 2013. Hoje, nenhuma delas tem previsão de continuidade da obra, deixando a população a mercê de novos desastres.
A auditoria também realizada em Gatos, no mesmo período que Panelas II, prevê que “foi identificado prejuízo de R$ 93.016,64, devido a superfaturamento, assim como medição de outros R$ 1.554.254,84 na execução da obra onde não se pode comprovar que são integralmente devidos. Foi identificada paralisação das obras devido a atraso na liberação de recursos federais. (…) Também foram verificados atrasos causados por problemas operacionais pela Contratada como atraso nos pagamentos efetuados pela Contratada ao seu pessoal, bem como atrasos causados por necessidade de alteração do projeto”. O Governo Federal repassou R$ 4.616.000,00 para a construção da obra, quando o previsto era de R$ 11.540.000,00.
A publicação da Secretaria de Recursos Hídricos e Energéticos de Pernambuco (SRHE/PE), datada em 28 de dezembro de 2011, destaca que os moradores que tinham residência nos terrenos onde seriam construídas as barragens de Panelas II e Gatos estavam sendo desapropriados. Tinham sido liberados R$2,7 milhões para os pagamentos de 47 propriedades. Além desse número, 15 já tinham sido indenizadas, com investimentos de R$730 mil. A equipe responsável do Instituto de Terras e Reforma Agrária de Pernambuco (Iterpe) esteve no local fazendo a desapropriação do terreno, que envolveu construções, benfeitorias – melhoria para a extensão da vida útil do bem – e terra nua – imóvel rural sem investimentos. Ao total, a construção afetou cerca de 200 propriedades nos dois municípios.
“Se o que o Governo prometeu tivesse sido cumprido seria muito bom. Mas não foi tão bom assim, porque fomos desapropriados por um valor barato nas terras, um recurso baixo. A obra não foi terminada e para gente aqui é só prejuízo. Então, de qualquer modo tinha que sair porque não podia ficar lá por causa da barragem”, destaca o agricultor José Severino.
Em agosto de 2018, a Secretaria de Planejamento e Gestão (Seplag), por meio da Comissão Especial de Licitação de Obras e Serviços de Engenharia, abriu licitação de concorrência para contratação de empresa com a finalidade de conclusão das obras de construção da barragem de Panelas II. A construção já teria passado pela primeira e segunda etapa, restando sua finalização, com previsão de custo total de R$38.747.574,00.