Serrinha: tranquilidade e confiança dão lugar ao medo
Lugar calmo, seguro e familiar. É assim que os moradores da vila Poço da Seca, do distrito de Serrinha, localizado na Zona Rural de Serra Talhada, no Sertão Pernambucano, identificam o ambiente em que residem. Mas, a tragédia resultante do rompimento da barragem Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), junto ao sentimento cultivado desde setembro de 2018, deixou os moradores transtornados e em estado de alerta. Um intenso abalo derrubou copos e xícaras, chaves de fenda e até rachou casas, de acordo com habitantes da região, que acreditam que esse episódio está associado à barragem de Serrinha.
Em 09 de setembro de 2018, um forte tremor literalmente ‘abalou as estruturas’ dos moradores de Poço da Seca. A agricultora Valéria Cristina, que reside por lá desde que nasceu, há 30 anos, disse que houve “uma grande explosão”. O motorista Igor Fernando, de 31 anos, explica que estava limpando o transporte escolar que trabalha no momento em que escutou a zuada. “Foi um barulho muito alto”, diz.
A auxiliar de serviços gerais Andréa Carla conta sobre o susto que levou ao escutar o barulho. “Eu e minha cunhada estavamos indo na casa da minha vizinha dar um recado. Justamente quando a gente se aproximou de algumas rochas aí a gente escutou um estrondo muito grande, mas não deu pra sentir o abalo porque estávamos andando. Ficamos muito assustadas”, destaca. A agricultora Bruna Eveline, de 30 anos, estava fora de casa e ficou muito espantada com o episódio. “Eu tava passeando aqui na vendinha e aconteceu um grande terremoto. Deu um estouro – boom. Foi uma coisa muito alarmante para a vila, que deixou todo mundo preocupado”, relata. Muitas versões para um mesmo fato, que aconteceu no final da tarde de um domingo, por volta das 16h.

Entre Serra Talhada e Floresta, a 50 km e 60 km do distrito, respectivamente, fica a barragem de Serrinha, construída para ajudar os agricultores a irrigarem as plantações através da regularização de vazões – acúmulo de água para ser distribuído no período da estiagem. A reportagem procurou a Prefeitura de Serra Talhada para obter mais informações sobre a região e, de acordo com o site do município, confirmado por sua Assessoria de Comunicação, o distrito se chama, na verdade, Pajeú. Antigamente era conhecido por São Francisco. Eles afirmam que existem muitos sítios nessa área, mas não sabem informar quantos moradores. Continuamos chamando por Serrinha, já que este é o nome familiarizado pela população de lá.
Foto: Vegetação no entorno da barragem.
Lá, nos deparamos com a beleza singular do sertão, tão bem representada em obras literárias. A comunidade é formada por um povo simples e acolhedor. As casas, algumas com muro baixo e outras até sem, demonstram que ali é um lugar seguro. Sem sinal para celular, os moradores têm contato maior uns com os outros, diferentemente da cidade grande. Ali, o hábito de conversar na porta de casa com os vizinhos permanece, assim como as visitas diárias nas casas uns dos outros. O sol é quente de rachar e quem passa no meio da rua já procura uma sombra, esperando qualquer ventinho para ajudar a refrescar o calor de quase 30º graus. “A barragem se tornou também um lugar de lazer para a população. Quando tá muito quente e também nos finais de semana muita gente vem tomar banho nas comportas”, destaca Igor.
A vegetação, em sua grande maioria rasteira, transforma o visual de forma singular. São flores, cactos e árvores que preenchem um cenário lindo e característico do lugar. Por lá, mal se vê um carro ou moto, mas, quando passa, é preciso, por vezes, virar o rosto ou tapar o nariz pela quantidade de poeira que sobe do chão não pavimentado.
Foto: Vegetação na pedreira da barragem.
Próximo à barragem, bodes soltos fazem barulho enquanto caminhavam com seus sinos agarrados no pescoço, em meio à caatinga. Além do som citado, o que se ouve é o canto dos pássaros, abrilhantando ainda mais o cenário. Aquela região, para quem busca fugir do barulho da cidade grande, é ideal.
Um caminho de barro separa a água acumulada na barragem das suas comportas, próximas à pedreira. Descendo entre as pedras e vegetação, encontra-se uma galeria com os equipamentos hidromecânicos vinculados a água do reservatório, liberando o líquido em um riacho logo à frente. “Às vezes as comportas quebram ou apresentam algum defeito”, explica Andréa. A reportagem verificou que, em uma delas, a corrente d’água não saia pelo local apropriado, mas sim por um vazamento na encanação. A outra, aparentemente, funcionava normalmente.

Foto: Caminho que separa a o reservatório da pedreira da barragem.
A reportagem averiguou que, até março de 2019, os problemas relacionados às estruturas externas da barragem, descritas acima neste boletim, estavam presentes, sem alterações.
Foto: Comportas da barragem de Serrinha.
Até hoje, muitos habitantes da vila temem a falta de fiscalização na barragem e o medo do que aconteceria caso ela sangrasse – mais popularmente, esborrasse – ou até estourasse. Alunos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) estudaram essa questão e publicaram o artigo: “Análise de risco em virtude de rompimento hipotético da barragem no semiárido de Pernambuco”. Nele, investigaram um possível rompimento na barragem de Serrinha e suas consequências para a população e o meio ambiente. Em caso de ruptura, de acordo com a pesquisa, a água inundaria o distrito de Tupanaci, em Mirandiba, e Floresta. O primeiro seria atingido em cerca de três horas, com a inundação chegando a medir 11,20 metros, e o segundo em 19 horas, com água a 11,92 metros. Os moradores de Poço na Seca, no entanto, não seriam atingidos, já que a área é localizada em uma parte alta da região.
O propósito do estudo, como afirma os pesquisadores, é alertar os órgãos governamentais e responsáveis sobre o risco que os moradores da região sofrem caso não seja fiscalizada adequadamente a barragem, visando manter sua manutenção em dia, além da segurança de quem reside na localidade. No texto afirmam, ainda, que “a barragem de Serrinha possui um potencial hídrico elevado com pressuposto de atender com regularidade as demandas das populações da região, principalmente com a finalidade de suprir as necessidades agrícolas. Entretanto, é necessário um gerenciamento efetivo para não pôr em risco as comunidades locais, fazendo-se necessário um plano que possa retirar de forma organizada as mais de 22 mil pessoas das áreas de risco.”.
José Gomes Rodrigues, popularmente conhecido como Zé Preto – como ele se apresenta a todos, é um dos moradores da região. Tem 57 anos e mora há 15 anos na vila, junto com a esposa, Jadileide de Alves Nogueira Rodrigues, e três filhos: Janailson, Juliano e Janilson. Ele vivia em um povoado chamado São Francisco, hoje debaixo d’água após a construção da barragem. Antes de ir para o Poço da Seca, também residiu no Barriga Furada, vila próxima a que está hoje.
Sorridente, Zé Preto faz questão de se apresentar várias vezes como um homem trabalhador. Ele mesmo trabalhou na construção da barragem, na década de 80, como operador de martelete – máquina para perfurar e romper concreto, rochas, cerâmica, entre outros materiais; além de ser agricultor “desde que nasceu”. “Tinha serviço todo dia, era um rojão só”, lembra Zé sobre a obra. Foram três anos só para concluir o levantamento da pedreira onde fica o sangradouro. “Era uma média de uns 2.500 trabalhadores”, diz o agricultor. Zé também atuou na explosão de dinamites, onde destruíram o terreno para depois construir o muro de pedras, chamado de pedreiras, que separa o reservatório das comportas.

Diante da falta de respostas oficiais sobre o tremor, os moradores do Poço usam a imaginação para explicar o que tanto os assusta. Para alguns deles, a causa pode pode ter sido alguma dinamite utilizada na obra que, por algum descuido ou imprevisto, não explodiu na época, mas sim 20 anos depois. Zé diz convicto que não é possível. “Quem disser que foi dinamite tá mentindo. Surgiu um boato, mas é mentira. Pode confiar que quem tá dizendo sou eu, que quem detonou esse fogo foi nós”, ressaltou.
O pensamento do motorista Paulo Adriano, conhecido como Paulinho, contradiz a segurança de Zé. Para Paulo, há uma grande suspeita do tremor estar associado à construção da barragem. “No tempo que soltavam as bombas para construir as pedreiras, a região e as casas eram muito abaladas e até hoje algumas apresentam rachaduras. Pode ser que uma dinamite tenha ficado aí por esse tempo todo e ter estourado”, confirma o motorista.
Outros boatos repassados através do boca-a-boca e nas redes sociais assustaram os moradores de Floresta nos primeiros meses de 2019. Por causa das fortes chuvas de fevereiro e março, que transformaram o cenário do Sertão do seco ao verde, houve histórias de que a barragem de Serrinha estava cheia e corria o risco de transbordar – ou até estourar, atingindo Floresta. Após monitoramento da Agência Pernambucana de Águas e Clima (Apac), em 24 de março, concluiu-se que apenas 12,8% da barragem estava cheia, descartando a possibilidade de acontecer algum rompimento.
“Não acho que um dia essa barragem vá estourar. Ela precisa mesmo é de administração. Eu queria é que o governador, os deputados estaduais e o prefeito viessem aqui. O presidente também, peço a ele que olhe para o Nordeste, que tá abandonado, já que ele cortou tudo, inclusive os benefícios do povo, que o povo precisa”, afirmou Zé Preto com o olhar entristecido.
Do concreto até a barragem
Levantamento da Agência Nacional de Águas (ANA), publicado em janeiro de 2019, aponta barragens com fiscalizações prioritárias em todo o país, enquadrando-as em Categoria de Risco (CRI) e Dano Potencial Associado (DPA). A barragem de Serrinha tem médio CRI e alto DPA, ou seja, nível médio de ocorrência de um acidente na própria barragem e alto nível de algum dano influenciar impactos humanos, ambientais e econômicos no local.
A mais de 400 km da capital pernambucana, Serra Talhada é conhecida como a capital do xaxado. Seu nome se refere a uma montanha que dá a ideia de que foi cortada. Duas barragens preenchem seu território: a barragem do Jazigo, voltada para a irrigação, e a de Serrinha, também conhecida como o Açude de Serrinha, designada para a regularização de vazões, como citado acima. A bacia hidrográfica do Rio Pajeú, afluente do Rio São Francisco, nasce no município de Brejinho, em Pernambuco, e se estende por cerca de 350 km. Ela é a maior bacia de Pernambuco e abrange cerca de 20 municípios, entre eles, o de Serra Talhada.
A Construtora Mendes Júnior SA foi a responsável pela construção, que tinha previsão inicial de 600 dias para a conclusão. A obra começou em 24 de novembro de 1986 e passou por uma série de termos aditivos relacionados à inclusão de outros serviços que não estavam planejados previamente no projeto. Isso adiou o prazo final várias vezes, até que paralisou em 1993 por esgotamentos financeiros.
A retomada das obras aconteceu em 09 de outubro de 1995, sendo prioridade a sua conclusão para o Governo Federal. Após longos processos contra a construtora contratada, houve a rescisão do contrato, passando a finalização da obra para a responsabilidade do 3º Batalhão de Engenharia de Construção do Exército, com previsão inicial de conclusão em janeiro de 1996, e investimentos de até R$ 2 milhões, além das aplicações financeiras anteriores. O curto tempo foi alertado pelos engenheiros do Dnocs, responsáveis pela fiscalização da obra, devido à necessidade de finalização antes da próxima estação chuvosa.
No documento do Tribunal de Contas da União, publicado no Diário Oficial da União (DOU) em 04 de novembro de 1996, consta que a última fiscalização da obra aconteceu no dia 13 de março de 1996, mas a barragem ainda não estava concluída, apesar de afirmar que os trabalhos estavam acelerados. As informações contidas é que estava na fase final e poderia entregar semi-concluída em 30 de março de 1996, para inauguração, e restaria a conclusão de parte do paredão de rochas e das obras das comportas, necessitando de mais investimentos financeiros.

Linha do tempo da construção da barragem de Serrinha.

Em 2011, o Dnocs publicou edital de concorrência pública para realizar recuperação de algumas barragens em Pernambuco, inclusive a de Serrinha. Na época, os serviços necessários eram referentes a roçagem e limpeza dos taludes e da área de segurança, retirada da vegetação aquática, recuperação do coroamento, da rede viária, da estrutura de concreto da galeria e implantação de instrumentação básica.
No ano seguinte, em 11 de junho de 2012, uma publicação do Tribunal de Contas da União esclarece que, entre 2006 e 2007, foram feitas recuperações em equipamentos hidromecânicos de 9 barragens, entre elas, a de Serrinha. Na época, estavam aguardando recursos para recuperar a instrumentação, vazamento na galeria e acesso na barragem em questão, além de outros problemas.
A Agência Executiva de Apoio à Gestão de Bacias Hidrográficas Peixe Vivo, órgão responsável pela elaboração de diagnóstico hidroambiental em trechos da bacia hidrográfica do Rio Pajeú, em outubro de 2016, fez um estudo sobre a área, visando analisar a contaminação do Rio Pajeú por defensivos agrícolas. Para entender o porquê da contaminação, foi preciso averiguar as características e uso do solo, a conduta das culturas, o uso de agrotóxicos, áreas utilizadas para plantio, entre outras questões.
No relatório do Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco 2016-2025, realizada pela AGB Peixe Vivo, foi destacada a escassez e as degradadas condições de qualidade da água no São Francisco e seus afluentes. Como consta no documento, o uso de agrotóxicos pelo pequeno agricultor rural e a falta de conhecimento sobre as práticas corretas tem desenvolvido uma grande contaminação, prejudicando a qualidade da água e do solo. Foi o que aconteceu na barragem de Serrinha, onde foram feitas afirmações, de acordo com estudo e pesquisa na região, da contaminação e até desenvolvimento de doenças cancerígenas relacionadas à absorção desses agrotóxicos.
Entre as maiores dificuldades do sertanejo, está a seca e a sede. A barragem, que tinha o propósito de aliviar os prejuízos, não tem ajudado muito os moradores da região. Em julho de 2015, uma toxina prejudicial à saúde humana foi encontrada na barragem de Serrinha, inviabilizando seu consumo. Para prevenir a contaminação da população, o Dnocs fechou as comportas. Isso gerou problemas para aqueles que usavam desta água para a irrigação ou até consumo, fazendo com que tivessem que adquirir água através de carro-pipa.
De acordo com a Prefeitura de Serra Talhada, em maio de 2018 a água da barragem de Serrinha foi liberada para consumo humano e manuseio. O Relatório de Ensaios do Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen/PE) divulgou que, com base em análises toxicológicas e microscópicas, o reservatório está de acordo com as recomendações do Ministério da Saúde.
Além de toda a burocracia referente às solicitações de fiscalizações ou manutenções na barragem, também é preciso colocar em prática a conscientização da população que usufrui e mora nas proximidades desses reservatórios. Isso porque algumas construções irregulares, uso de agrotóxicos e descarte do lixo, por exemplo, podem contaminar o açude, gerando novas complicações para os moradores que necessitam desse bem tão precioso: a água.
O empreendedor da barragem de Serrinha, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), desde 2016 está ciente das irregularidades referentes à barragem e, desde então, vem tomando iniciativas para assegurar a manutenção e conservação desta obra.
“Já existe o estudo de Serrinha. Desde 2016, a gente elaborou o projeto para Serrinha e mais 11 barragens para recuperação de equipamentos hidromecânicos. Enviamos o orçamento em 2016, em 2017 não houve recurso, 2018 também não e agora pediram para que reenviasse. Está na análise do projeto, para reavaliar o custo, que está em aproximadamente R$4 milhões. Tem uma determinação do Ministério da Integração para que a gente faça a manutenção, não pelo risco de rompimento, mas porque ela está perdendo muita água que poderia ser utilizada”, ressalta o coordenador estadual do Dnocs, Marcos Rueda. Existe também a problemática das comportas, que, de acordo com moradores, são manuseadas também pelos agricultores, que precisam da água. “Quando eu cheguei aqui no Dnocs tinha um grande apelo porque não havia controle na abertura e fechamento das comportas, para liberação de água. O problema é que o pessoal vai lá e quebra, porque não tem vigilância. Eu já tive que mandar fechar e levar o registro para o Dnocs, para que não quebrasse novamente”, complementa.
O coordenador está há três anos nesse cargo e trabalha, atualmente, com serviços voltados para recuperação e construção de barragens, limpeza de barreiras e adutoras – como a adutora do rio pajeú, a maior do estado.
População Rural de Serra Talhada
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010.
Localização
data da visita
março
Foto: Cerca de uma das casas da vila.
