Sentido Centro do Recife

por | 26/11/2024

Foto: Paulo Pinheiro

As linhas Beberibe – Espinheiro, Dois Unidos – João de Barros e Dois Unidos – Prefeitura são as principais rotas que conectam os moradores da periferia de Dois Unidos ao centro do Recife. À primeira vista, pode parecer que a demanda de transporte é considerável, mas, quando analisamos o tamanho da população e as necessidades de mobilidade, fica evidente o descaso com os moradores de Dois Unidos em relação ao transporte público.

Com mais de 39 mil habitantes, o bairro da Zona Norte do Recife conta atualmente com apenas oito ônibus para fazer o trajeto até o centro da cidade. Esses veículos, com capacidade para 30 passageiros sentados, percorrem uma distância de aproximadamente 13,1 km entre Dois Unidos e a área central. Em condições ideais, o percurso levaria cerca de 43 minutos para chegar à Avenida Dantas Barretos, local onde inicia o retorno ao bairro, sem contar as paradas para embarque e desembarque.

Na prática, os moradores enfrentam atrasos constantes, frota insuficiente, percursos longos e mal planejados, dificultando o acesso ao centro da cidade para quem precisa trabalhar ou realizar outras atividades. A superlotação dos ônibus é outro problema que coloca em risco a segurança dos passageiros, que muitas vezes são obrigados a se sentar nas escadas, área destinada exclusivamente para desembarque e sinalizada como zona de atenção.

O transporte coletivo do Recife sempre enfrentou dificuldades, mas a situação se agravou nos últimos anos. Como passageiro diário dessas linhas, sou testemunha do descaso que persiste há mais de 10 anos. Com a pandemia, em 2020, a frota foi reduzida em 55% pelo governo do Estado. Na atual gestão, de Raquel Lyra, o intervalo entre a chegada dos ônibus ao terminal do bairro, que antes era de 20 minutos, pode ultrapassar mais de uma hora. A falta de fiscalização por parte da Secretaria de Mobilidade e Infraestrutura (Semobi), permite que os coletivos saiam em horários aleatórios, mesmo que o usuário acompanhe o fluxo deles pelo aplicativo CittaMobi, oferecido pelo Grande Recife Consórcio de Transporte (CTM), que deveria facilitar o acesso aos horários atualizados dos transportes.

Esses desafios, que podem parecer apenas questões de planejamento e adaptação, revelam aspectos centrais do debate relacionado ao racismo ambiental. Esse conceito vai além das políticas climáticas, refletindo-se também em políticas públicas que, de forma ampla, ao se ausentarem, negligenciam territórios predominantemente habitados por pessoas pretas, pobres e periféricas. Dois Unidos exemplifica essa realidade. Com mais de 70% da população autodeclarada não branca, o bairro é diretamente afetado pela exclusão sistemática na distribuição de serviços e direitos relativos  à mobilidade, que desagua no transporte coletivo.

Uma mobilidade planejada sob uma lógica antirracista necessita de uma compreensão direta do perfil dos usuários e de como se estrutura o sistema de transporte no nível do nosso país e região. Para a população negra que diariamente utiliza esse serviço, o transporte coletivo historicamente remete a uma forma de violência e repressão, como ocorria quando corpos africanos eram amontoados nos porões dos navios negreiros. Da colônia para cá, as formas de transporte de pessoas pretas, pardas, das periferias e favelas nunca foram sinônimos de qualidade e continuam sendo tratadas por um olhar desumano, que não permite uma adequação orientada pelo direito à mobilidade e à cidadania, direitos fundamentais de ir e vir. Caso queiram exercer esses direitos, as pessoas residentes nesses bairros terão que se submeter à ausência do Estado.

“A luta contra o racismo implica o necessário combate pela livre circulação negra no espaço. Muitos embates negros no decorrer da história tiveram a mobilidade como principal terreno de realização. Compreender os conflitos sociais em torno do transporte como uma dimensão da luta antirracista é tarefa sociológica e política. Cabe analisar que tipos de agenda são encampados pela população negra para, neste período histórico, realizar a ruptura com a mobilidade racista e constituir uma mobilidade antirracista”, pontua o militante do Movimento Passe Livre Paíque Duques, no livro Mobilidade antirracista.