Duas horas de chuva

por | 26/11/2024

Deus

chove agora no meu coração

para que eu não pense em comprar um

guarda-chuva de balas

e fazer justiça com as próprias mãos

Miró, Há Deus 2

O que duas horas de chuva forte fariam com o Recife? Sem pensar duas vezes, eu faria uma oração, como faço todas as vezes que fico na varanda da minha casa, como um tipo de vigilante, sempre que chove forte, desde 2019, quando ouvi uma barreira cair. Parecia um trovão dos grandes e as casas, como peças de brinquedo, se despedaçando em questão de segundos.

Em 2022, o Recife enfim ganhou notoriedade por seus desafios como uma cidade que precisa de adaptações para enfrentar as emergências climáticas. Cento e trinta mortos e mais de 2 mil pessoas desabrigadas foram indícios de um debate sobre as dificuldades de saneamento e de como as políticas públicas não abarcam as periferias da cidade. Eu sobrevivo em Dois Unidos há 11 anos, e, junto à população, enfrento diariamente os desafios de um Recife invisível, que está na porta de casa: esgoto a céu aberto, rua sem calçamento, água encanada de forma irregular e barreiras sem contenção. Parece que estou descrevendo uma região ocupada há meses, mas estou falando de um bairro que existe há 75 anos.

A chuva não é o problema que quero abordar, pois se trata de um fenômeno natural ao qual precisamos nos adaptar. Quero refletir sobre como as gestões do município têm lidado com os desafios de Dois Unidos em relação ao saneamento básico nos últimos seis anos, pelo menos.

Emanuel Henrique de França, Érica Virgínia, Érick Junior, Lucimar Alves, Daffyne Kauane Alves, Claudia Bezerra e Lia de Oliveira. Uma família inteira soterrada em um deslizamento de terra em 2019, na Rua Bela Vista, no Córrego do Morcego, no bairro de Dois Unidos, periferia do Recife, durante a gestão de Geraldo Júlio (PSB). A chuva nada teve a ver com esse acidente, que, segundo matéria publicada pelo portal G1, foi caracterizado pelo Corpo de Bombeiros como um “acidente” devido a um vazamento da Compesa sobre uma barreira sem contenção. Ao que parece, o programa “Mais Vidas no Morro”, que em 2019 completou três anos, não conseguiu alcançar Dois Unidos a tempo para evitar a tragédia.

Em 2022, como já mencionado, tivemos, em 30 segundos, parte de uma comunidade varrida pela lama, em Jardim Monte Verde, deixando mais de 20 mortos, segundo o Corpo de Bombeiros. Ainda houve a troca de responsabilidades entre Jaboatão e Recife, já que ambos os municípios não souberam definir a qual cidade pertencia o território nos momentos seguintes da tragédia, para no fim a zona ser parte da capital pernambucana.

Este texto não é uma oposição a João Campos e seu partido. Acredito que, mesmo com os fatos apresentados, a atual gestão do Recife tem conseguido fazer avanços, mas é necessário que o Recife não cometa o mesmo erro do Rio Grande do Sul, que entenda a urgência de colocar em prática políticas do clima, inspiradas em projetos que já deram resultado, como o modelo de cidade-esponja, que prepara o território para o grande acúmulo de água decorrente das chuvas.

Da janela de casa, consigo ver do outro lado do bairro uma barreira recebendo contenção. Me pergunto quanto tempo vai demorar para que as ações da prefeitura cheguem à Rua João Cavalcanti Petribú. Espero que não demore muito, pois, se a gestão falhar, as mudanças climáticas vão evidenciar essa ausência.