Onde você mora tem pontos de risco? Na sua comunidade tem esgoto tratado, acesso a posto de saúde? Se a resposta foi não, você enfrenta as dificuldades que o termo “racismo ambiental” representa. Mas calma, pode parecer difícil de entender, mas não é. Por isso, vamos mergulhar nesse tema para compreender seu significado e o que o bairro Dois Unidos, uma das periferias do Recife tem a ver com isso.
Como surgiu o termo racismo ambiental?
Esse debate ganhou popularidade no Brasil recentemente, mas não é novo. O termo (racismo ambiental) surgiu em 1980, quando um químico, pastor e ativista dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, Dr. Benjamin Franklin Chaves Jr., denunciou, junto à comunidade negra do condado de Warren, na Carolina do Norte (EUA), a construção de depósitos de resíduos tóxicos próximos às suas casas. Segundo matéria publicada pela FIOCRUZ, um relatório da agência de proteção ambiental dos Estados Unidos (EPA) revelou que, em 1983, 75% dos depósitos de rejeitos localizados no sul dos Estados Unidos, ficavam próximo a bairros onde a maioria das pessoas eram negras.

Foto: Bullard (2000, p. 67) protesto de pessoas negras contra os depósitos.
Esse episódio foi a porta de entrada para um debate sobre políticas ambientais em territórios onde a maioria da população é formada por pessoas pretas, pardas e indígenas.
“É discriminação racial na tomada de decisões. É discriminação racial na efetivação das normas. É discriminação racial na alocação deliberada de lixo tóxico e indústrias poluentes em comunidades vulnerabilizadas. É discriminação racial no consentimento público de fatores de risco à saúde e vida humana em comunidades de cor.” (CHAVIS JR., 1993, p. 3)
Ou seja, as injustiças do Estado afetam e excluem pessoas não brancas do processo de formulação de políticas públicas, e as deixam sem acesso a direitos básicos.
Com o avanço do debate mais vertentes foram surgindo, com por exemplo, direito a terra, preservação ambiental entre outros. Nós vamos abordar as questões entorno de preparação de regiões periféricas para lidar com os avanços do climáticos extremos, ou seja, chuvas intensas, deslizamentos de barreiras e inundações entre outros.
Toda essa discussão que pauta o racismo e o aquecimento global, tem o objetivo de diminuir o impacto desses eventos sobre grupos vulnerabilizados, localizados nas periferias da cidade, por meio da lua por justiça climática. “A luta por justiça climática existe porque existem injustiças e desigualdades que são intensificadas pelo aquecimento global. A luta antirracista é uma luta pelo acesso a direitos, pelo combate e enfrentamento ao racismo. E, quando isso se junta e olha para a questão climática, estamos falando de um lugar, de uma sociedade boa para todo mundo. Estamos dizendo que as pessoas que mais precisam de atenção na questão climática são as pessoas negras e indígenas, porque, nesse histórico de formação do país, foram as pessoas que foram negligenciadas pelas políticas públicas. Então, uma cidade segura para uma pessoa negra é uma cidade segura para todo mundo.” enfatizou Igor Travassos, ativista climático, e ex-coordenador da frente de justiça climática do Greenpeace (ONG).
Apesar de ser o berço do debate, os Estados Unidos não são unanimidade nesse tema. Cada país e região têm suas próprias questões relacionadas ao racismo ambiental, principalmente os países colonizados, como o Brasil. Mas como conceito se aplica ao nosso país? “Por que numa mesma cidade, com as mesmas características, um bairro alaga e o outro não? Porque algumas pessoas conseguem dormir tranquilamente, enquanto outras sequer conseguem colocar a cabeça no travesseiro, por que o morro pode desmoronar? Essas perguntas sobre o serviço público, já demonstra o porquê, quando a gente fala sobre a estruturação dos territórios, as populações negras, indígenas, minoritárias são empurradas para determinados territórios. É sobre a ideia de superioridade, é sobre quais territórios e pessoas precisam de cuidados. O racismo ambiental está diretamente ligado ao espaço e quem ocupa ele”, explica o ativista pernambucano.
No Recife, tivemos exemplo recente de discriminação territorial. Em maio de 2022, no distrito de Jardim Monte Verde, uma barreira caiu, matando 44 pessoas, segundo o G1, devido à falta de contenção das encostas na região. O deslizamento aconteceu após fortes chuvas causadas por um fenômeno climático que se repete todos os anos, chamado “Ondas de Leste”, que resulta em grande acúmulo de chuvas na costa nordestina brasileira.
Durante a tragédia, as gestões do Recife e Jaboatão dos Guararapes promoveram uma verdadeira “passada de bola”, ao ponto de nenhuma das cidades assumir a responsabilidade pelo local, o que retardou a prestação de socorro aos afetados. No final das contas, o IBGE resolveu a dúvida, demonstrando que a área pertence à capital do Estado.
A partir de agora, vamos entender como isso afeta o bairro de Dois Unidos.
Dois unidos e as características de uma região vulnerabilizada

Com 75 anos de existência, o distrito de Dois Unidos, localizado na Região Político Administrativa (RPA) 2, Zona Norte da capital pernambucana, é cercado pelas águas do Rio Beberibe e do Rio Morno, na divisa entre Recife e Olinda. A região abriga mais de 31.4 mil pessoas, sendo mais de 70% autodeclaradas não brancas. A renda per capita dos moradores é inferior a um salário-mínimo, segundo a gestão municipal.
Confira o ranking dos 12 bairros mais populosos do Recife:

O distrito conta com a Associação Comunitária dos Moradores, que realiza diversas atividades no bairro, incluindo o suporte à periferia de Dois Unidos, promovendo ações que auxiliam a população. No entanto, segundo o presidente da organização, Rafael Urbano, Dois Unidos enfrenta problemas relacionados à “infraestrutura, especialmente no que diz respeito à questão hídrica. A falta de água é um grande problema que enfrentamos devido ao não fornecimento pela Compesa. Além disso, há uma grande escassez de segurança”, relatou.
Desmatamento e falta de monitoramento das áreas verdes do bairro

O bairro é conhecido pela Reserva da Floresta Urbana Mata de Dois Unidos, criada a partir da Lei nº 9.989, de 1987, e protegida pela Sistema Estadual de Unidades de Conservação (SEUC) por meio da Lei nº 14.324, de 2012. A reserva é caracterizada como ecossistema da Mata Atlântica brasileira, com 34,72 hectares — o equivalente a 34 campos de futebol — de muita biodiversidade, localizado na bacia hidrográfica do Rio Beberibe.
Porém, pesar das leis de preservação da reserva florestal, o inchaço urbano tem afetado a saúde da área protegida. Uma avaliação do território, publicada no VII Congresso Brasileiro de Geógrafos, em 2014, revelou que o parque natural já apresentava características de expansão urbana, ou seja, sofre com a ação indevida da população, como descarte de lixo ou desmatamento para construção de moradias. A pesquisa concluiu que existe a necessidade de um plano de manejo com diretrizes que garantam a saúde ecológica da reserva, mas, até o momento, 10 anos depois, o plano ainda não foi elaborado, segundo documento da Agência Pernambucana de Meio Ambiente.
Mortes pela Ausência do Estado em Dois Unidos
Esse não é o único problema do bairro, visse? O Córrego do Morcego foi notícia em toda a região metropolitana do Recife, em 2019, quando um deslizamento de barreira matou uma família inteira. O caso evidenciou um dos grandes desafios dos moradores dos morros da região: a falta de saneamento básico e de planejamento urbano.
Rua João Cavalcanti Petribú
Apesar do nome que remete a famílias tradicionais de Pernambuco — “Cavalcanti” e “Petribú” —, esse endereço é palco de uma série de dificuldades enfrentadas pelos moradores. Segundo os residentes, a rua existe há mais de 30 anos, mas parte dela nunca recebeu uma estrutura adequada. Alguns chegam a relatar que o endereço era considerado uma área verde em seus primeiros anos de existência. Como conta Wercules Djair, morador: “Quando eu cheguei aqui, não tinha muitas casas, era uma região desabitada, era só mato, isso há 15 anos atrás. Sempre foi um lugar bem arejado. Hoje, nós temos uma rua 40% boa, mas eu já vi pessoas caírem de moto e caminhão cair em uma barreira e atingir casa. Morar em barreira é terrível. A gente dorme se apegando nas orações por nós mesmos e pelos vizinhos, porque não é só a gente que vive próximo a barreira”.
Em 2019, um deslizamento na rua derrubou uma casa e soterrou pela metade uma moradora, Wercules foi um dos vizinhos que socorreu a mulher “Eu presenciei aquela barreira caindo e derrubando casa ali (aponta Wercules para uma barreira coberta por vegetação). Soterrou uma mulher pela cintura porque ela voltou para pegar os documentos. Saímos, eu e minha esposa correndo pra lá, e conseguimos tirar ela. Quando voltei do socorro, caíram duas barreiras próximas à minha casa, deixando a base da minha residência exposta.”, relatou o morador.
Em 2016, a Secretaria de Urbanização do Recife visitou o endereço e realizou uma obra paliativa de pavimentação da rua com piche, 5 muros de arrimos e a instalação de uma canaleta no lado esquerdo da via. O trabalho não teve continuidade, e após 8 anos, os moradores enfrentam as mesmas vulnerabilidades. “O esposo do nosso vizinho Chocho (vulgo), veio a passar mal, teve infarto e, como a rua estava muito danificada, cheia de buracos, não subia carro de jeito nenhum, muito mal passava um ser humano. Aí, colocaram ele no carro de mão. A ambulância ficou no pé da ladeira, mas, devido a essa demora no socorro, ele veio a falecer. Eu sou testemunha viva disso.”, relatou Wercules.

A região é o lar de muitas pessoas que sonharam em ter sua casa própria e, mesmo cientes das dificuldades, não tiveram outra opção a não ser investir para sair do aluguel. “Eu vim morar aqui pelo incentivo de ter minha casa própria. As dificuldades tremendas que enfrentamos aqui são a falta d’água, saneamento básico e a ladeira sem acessibilidade. Meu esposo é uma pessoa com deficiência visual, tem baixa visão, e eu também tenho problemas nas articulações, o que me impede de descer e subir a ladeira “, se queixa Maria Cecília, dona de casa, de 45 anos, moradora da R. João Cavalcanti Petribú.
A dona de casa, Wanessa Silva, é uma antiga moradora no endereço, viveu na rua João Cavalcanti Petribú durante 9 anos, e é uma testemunha dos desafios da comunidade em torno de segurança e que viveu na pele as consequências da falta de saneamento. “Quando eu fui ter meu segundo filho, eu não consegui pegar um carro de aplicativo para chegar na maternidade, por se tratar de um lugar de difícil acesso. É um lugar que não é visto pela prefeitura. Eu vivi muitas situações difíceis lá, caí várias vezes na ladeira e o meu marido foi assaltado na João Cavalcanti”, contou.
A localização da casa onde Wanessa morou a fez testemunhar episódios que demonstram a insuficiência da prefeitura e do Estado no distrito. “Eu presenciei uma Kombi quase cair barreira abaixo no terreno que fica em frente à minha antiga casa, também testemunhei vários assaltos na João Cavalcanti. É realmente difícil ali, por isso eu me mudei”, completou.
O acesso à saúde também é um desafio para os moradores da localidade. Apesar de ser uma área mapeada pela gestão do Recife, com CEP e situada a apenas 500 metros de distância da Unidade Básica de Saúde (UBS) Clube dos Delegados, os domiciliados não conseguem atendimento porque o território não está na área de cobertura do posto de saúde.
Rosimary Silva, também moradora da Rua João Cavalcanti Petribú, solicitou a marcação de um exame para o seu pai, há mais dois anos. Nesse meio tempo, ele faleceu, e até hoje está na fila de espera. “Até hoje eu espero. Faz mais de dois anos que solicitei a marcação de uma ressonância para meu pai e até hoje não me ligaram. Mas eu deixei a solicitação em aberto e tô esperando eles me ligarem para eu dizer: ‘Tarde demais, minha filha, meu bebê (apelido carinhoso do pai) já morreu. Faça o favor de colocar alguém que esteja precisando’. Foram anos de espera. Agora, não adianta mais.”, relatou Silva.
Mas existe um engajamento da própria comunidade em prol da atenção por parte da gestão municipal. Elizama Pinheiro, liderança comunitária da rua, chegou ao endereço em 2013 e logo começou a organizar ações para garantir a atuação do poder público na rua. “Eu comecei a atuar como liderança aqui na João Cavalcanti Petribú, quando vi um caminhão de entrega quase descer a barreira. Na época, a rua era mais acidentada. Eu tenho um amigo em Água Fria que também é liderança e pedi ajuda dele. E aí começamos a ir atrás da prefeitura, e conquistamos obras importantes pra rua, mas já faz muito tempo, precisa de manutenção,” alega Elizama.
Apagamento cultural do bairro
O Espaço Cultural, antigo forró do Arlindo, que já foi palco de grandes nomes como Luiz Gonzaga e Dominguinhos, está atualmente fechado e completamente abandonado, sem nenhum suporte do Estado e município. Não há sequer sinalização que registre que ali viveu Arlindo dos Oito Baixos, e um dos endereços mais famosos da Zona Norte do Recife nos anos 2000. Parte do acervo de Arlindo foi perdido após o teto da antiga oficina do músico desabar. A memória do sanfoneiro segue preservada em sua residência, onde a família mantém um museu improvisado em sua homenagem. “Meu filho organizou o museu aqui, na casa dele, que é aqui no espaço cultural. O forró fechou por falta de verba. Sem dinheiro, ninguém faz nada, sem ajuda também. Eu não tenho como fazer nada. O interesse das pessoas é muito pouco. Quem tem vontade de fazer, no caso, sou eu, mas eu não posso, né?”, enfatiza a Viúva de Arlindo, Odette Macedo.

Denúncias em telejornais que não surtiram efeitos
O endereço já foi pauta de diversas reportagens ao longo dos anos. A TV Jornal, TV Clube (atual TV Guararapes) e a TV Tribuna já visitaram a via para falar dos problemas da localidade, mas a tentativa de prevenir danos à população não funcionou. A jornalista e fundadora do Coletivo Sargento Perifa, além de moradora do bairro de Dois Unidos, Marthiene Keila, avalia a atuação do jornalismo recifense na tratativa de temas relacionados à periferia e às suas vulnerabilidades: “Falhamos muito, principalmente enquanto mídia tradicional. Geralmente, só chegamos no final da história, depois que as coisas acontecem. O que diferencia um jornalismo mais presente no território, mais comunitário. Enquanto a mídia tradicional, muitas vezes, aparece apenas quando já ocorreu a tragédia, a mídia independente está lá para prevenir. Ela faz rodas de conversa, espalha lambe-lambes pela comunidade, desempenhando um papel preventivo que o jornalismo tradicional ainda não exerce plenamente”.

Segundo a comunicadora popular, o desafio da comunicação nas periferias estão em entender a comunidade como parte do debate e não apenas como aprendiz. Na prática, as pessoas já sabem o que é racismo ambiental: “Quando peço para elas analisarem o próprio contexto, o entendimento muda, porque não adianta falar esse termo para uma pessoa preta que nem se reconhece como preta. Por outro lado, se eu pergunto sobre um deslizamento de barreira, falta de creche na comunidade, saneamento básico, assim, fica muito mais fácil comunicar, partindo das vivências. Depois, quando eles já estão falando disso de forma natural, porque eles falam muito bem, inclusive, mostramos que tudo isso é racismo ambiental”, exemplifica a jornalista.
Bom, diante de tudo o que foi apresentado nesta reportagem, o que falta para a cidade do recife esta pronta para lidar com as mudanças climáticas em territórios como Dois unidos e para além disso, combater os reflexos do racismo ambiental dentro das periferias? “Tem que ter participação social. Não é só o prefeito, não é só o secretário ou só uma consultoria europeia que deve decidir como as coisas vão acontecer. As pessoas que vivem a realidade do Recife, do seu bairro, são as que realmente sabem o que está acontecendo. Não adianta criar um plano de ação local, de clima, de adaptação ou de mitigação se não estamos ouvindo as pessoas que estão enfrentando os desastres climáticos”, Conclui Igor.
Mas, de fato, Dois Unidos é uma região vítima ou não do racismo ambiental? Com mais de 70% da sua população não branca, localidades sem estrutura mínima para sobrevivência, falta de preservação da natureza, cultural e da vida das pessoas, criando assim um cenário vulnerável para a população, que outro nome podemos dar todos esses descasos?