A penúltima parada da RPA 2

por | 26/11/2024

Sejam bem-vindos(as) à linha 742 – Dois Unidos/João de Barros, que inicia o seu retorno na ponte Duarte Coelho com destino ao bairro de origem (Dois Unidos): uma comunidade da periferia do Recife, cercada pelas águas dos rios Beberibe e Morno. Uma região onde ainda existe parte da Mata Atlântica brasileira e onde vivem mais de 31.4 mil moradores. Território que surgiu na época do Brasil Império, com mais de 179 anos de história e transformações, o distrito desenvolveu o seu próprio centro comercial e características de uma microrregião recifense.

Bom, para falar de Dois Unidos, vamos fazer uma breve viagem no tempo, então segura aí que o motorista vai pegar o urso! O primeiro suspiro da localidade foi em novembro de 1845, quando o Imperador Dom Pedro II, aprovou a Lei Provincial Nº 1.499, a construção da Estrada do Cumbe (atual Av. Hidelbrando de Vasconcelos), criada para dar acesso aos casarões localizados na região. O endereço teve seu primeiro registro em uma publicação do Jornal do Recife em 1883, segundo o portal Vozes da Zona Norte.

                   Foto do Diário de Pernambuco, da Antiga Estrada do Cumbe, em 1959.

Historicamente, Dois Unidos abrigou escravizados, tanto que em 1937, o Governador Agamenon Magalhães, criou a Liga Social Contra os Mocambos, que ficavam às margens do Rio Beberibe e no Grande Recife. Essa questão do nome fica mais evidente quando em 1949, um decreto do Estado transformou a liga no Serviço Social Contra os Mocambos (SSCM), que em 1950 inaugurou a Vila Popular Dois Unidos, com a construção de casas de barro e ripas e três cômodos: quarto, cozinha e sala. O bairro surge oficialmente em 1988,  devido ao crescimento populacional na região. Daí tiraram o “Vila” e ficou com esse nome “Dois Unidos”.

O distrito começa atravessando as águas do Rio Beberibe, e logo à frente se encontra a Av. Hidelbrando de Vasconcelos (antiga estrada do Cumbe). O nome da via é em homenagem  ao dono da falida fábrica Minerva, localizada no bairro. A avenida é o principal acesso ao bairro, aonde vamos nos ater para contar como está bairro hoje, vamos dividir o bairro em 4 paradas, beleza?

Parada 01: O Comércio de Dois Unidos

Centro comercial de Dois Unidos (Foto de Paulo Pinheiro)

Em Dois Unidos, o comércio é encontrado por todo o bairro considerando o tamanho da população e a renda dos moradores, que, segundo dados da Prefeitura do Recife é em média, de 937 reais mensais, o que implica em um forte consumo interno.

Tá com sede? Em 1940, uma fonte de água mineral encontrada na então Estrada do Cumbe, iniciou um dos pontos comerciais mais antigos do bairro: Águas Minerais Santa Clara. A empresa chegou a ser sede da Coca-Cola em 1941, enquanto a multinacional concluía a construção da sua fábrica no Rio de Janeiro, segundo levantamento do portal Vozes da Zona Norte.

Mineradora de Água Santa Clara (Imagem de Paulo Pinheiro)

Em dezembro de 1951, foi inaugurada a Fábrica Minerva, que produzia celulose, papel comum e para embalagens. Popularmente conhecida como a “Fábrica de Papel de Beberibe”, Minerva foi precursora no desenvolvimento populacional e econômico do bairro.

Fabrica Minerva (Diário de Pernambuco. em 1983)

Apesar de ser um marco na história do bairro de Dois Unidos, a fábrica descartava seus resíduos de forma indevida. Parte deles era direcionada para o Rio Beberibe, que influenciou na poluição do rio na época. Em 1960, o Diário de Pernambuco denunciou o manejo criminoso da fábrica.  Em 1994, a fábrica decretou falência.

Comércio familiar

Os empreendimentos de Dois Unidos também  têm raiz familiar. Foi assim com a padaria do Sr. Vasco, que transformou uma pequena mercearia na padaria mais antiga do distrito, com mais de 50 anos de tradição e culinária familiar, com bolos e pães variados, que trazem o sabor da comida de casa.

No nível de shopping, a moda também está presente em Dois Unidos. Temos a Lery Modas, que se destaca até mesmo em comparação com muitas lojas do centro. É uma loja relativamente nova, com 10 anos de atuação, moderna e até oferece delivery.  Mas quem realmente conquista o coração dos moradores de Dois Unidos é o comércio de rua, onde frutas e verduras são do dia e os preços que cabem no bolso. Um dos rostos mais conhecidos é o do Sr. Edinho, carinhosamente chamado de “Delegado”. Ele foca seu comércio em frutas, mas também é possível encontrar macaxeira e cará, entre outros naturais.

Ir no centro para comprar peixe? Nem pensar! O bairro tem sua própria peixaria, que também é uma miniloja de produtos naturais e foi inaugurada há 3 anos e reúne variedade de frutos do mar e produtos naturais.

Sarah Raquel e Nerivaldo Barros (Foto de Paulo Pinheiro)

“Aqui tem de tudo um pouco, mas o bom mesmo é o preço. Você compra barato e é pertinho de casa. Tem gente que vai ao centro para comprar e acaba gastando mais, e às vezes o camarão é pequenininho. Aqui a gente tem desde peixe até grãos e ervas para chá, com opções variadas para as pessoas”, conta, sorrindo Sarah Raquel, funcionária da Peixaria do Rei.

Em Dois Unidos, se cuidar é coisa de “cabra macho”, um dos salões mais conhecido do bairro, com mais de 9 anos de existência, fundado por Flávio Sobrinho, vulgo Dedé. Hoje, o espaço conta com mais dois colaboradores, além do proletário, o estabelecimento só atende com agendamento, que abre a partir da quinta-feira e funciona de segunda a quinta em horário normal, sexta, até as 17h30 porque Dedé é adventista e guarda o sábado.

Foto de Paulo Pinheiro

“Eu moro há 12 anos no bairro. Cheguei aqui por meio da minha esposa e montei meu negócio na região. O bairro vem avançando; tivemos recentemente a reforma do posto de saúde Bionor Teodósio e a construção da academia da cidade, próxima ao terminal. É gratificante ver essas melhorias acontecerem, porque me sinto parte do bairro. Minha barbearia está aqui, e é também onde realizo minhas ações sociais. Dois Unidos ainda têm muito a melhorar, e a segurança é uma das questões que deveriam ser prioridade. Dois Unidos tem um potencial enorme. Uma das coisas que mais admiro aqui é o comércio.” Contou o empresário.

O potencial de consumo do bairro é tão forte que, em março de 2024, o subúrbio recebeu uma das lojas do Novo Atacarejo, construída no lote da antiga Fábrica Minerva, uma área de 4.698 m², segundo o portal Ecossistema do Varejo. O levantamento ainda enfatiza a criação de 300 vagas de emprego na região.

Placa do Novo Atacarejo (Foto de Paulo Pinheiro)

Parada 02: Cultura do Bairro

No início dos anos 2000, o bairro ficou famoso pelo seu espaço cultural Arlindo dos 8 Baixos, popularmente conhecido como Forró do Arlindo. O local recebeu artistas como Luiz Gonzaga e Dominguinhos, trazendo pessoas amantes do forró e da culinária nordestina, e claro, pra tomar uma também.

Parada 03: Serviços públicos no bairro e ações comunitárias

Dois Unidos conheceu sua primeira linha de ônibus, em 1955, com número 741 e nome Vila Dois Unidos, pela empresa São Paulo. No início de 1987, a Mata de Dois Unidos, uma parte da Mata Atlântica nacional, foi regulamentada como área de preservação com 34,72 hectares, protegida pela Lei nº 9.989. Em 1993, o distrito recebeu o Posto de Saúde Professor Bionor Teodósio, que segue atendendo os moradores do bairro até os dias de hoje.

Em 1986, foi fundada a Associação Comunitária de Dois Unidos, com sede na Avenida Hildebrando de Vasconcelos, número 771. Atualmente, a entidade é presidida por Rafael Urbano, que por meio da instituição promove ações de suporte aos moradores. “Atuamos diretamente na comunidade, defendendo causas sociais e promovendo doações de alimentos devido à grande vulnerabilidade social que existe no bairro. Realizamos atividades esportivas duas vezes por semana, visando ocupar a mente dos jovens. A comunidade é acolhedora e, apesar de algumas dificuldades, como em qualquer lugar, é um lugar incrível para viver, morar e empreender. Se você souber comercializar o seu trabalho e fazer marketing, consegue empreender bem. Eu amo Dois Unidos.”, afirma Urbano.

Parada 04: A fé em Dois Unidos

Essas terras também são sagradas e guardam grandezas ancestrais de mulheres fortes. Essa raiz tem registros desde 1930 no Xangô Mãe Maria de Oyá, que zelou pela casa durante 8 anos. Em 1938, o terreiro foi fechado por uma ação de repressão policial. Maria de Oyá faleceu em 1939, passando seu legado para sua filha, a Ialorixá Mãe Biu, integrante da Sociedade Africana Santa Bárbara-Xambá.

Mãe Biu (Registro do Jornal do Commercio/Recife- 15/12/2018)

No dia 18 de junho de 1945, foi a vez de Amara Mendes (Ialorixá Mãe Amara) e Antônio Higino Barreto (Babalorixá) inaugurarem o terreiro Santa Clara, São João Batista na entrada do Cumbe. Em 1955, o terreiro foi transferido para a Rua Mamede Coelho, e passou a se chamar “Ilê Obá Aganjú Okoloyá”, e segue funcionando com muito axé, sob a regência de Maria Helena Sampaio. A Ialorixá Maria Helena também é cantora, Mestra em Cultura Popular e fundadora da Rede de Mulheres de Terreiro de Pernambuco. “É que aqui era o antigo Santa Cruz, a concentração do Santa Cruz. Aí, na época, ele se mudou, e o terreno ficou. Minha mãe, sim, quando abriu o terreiro, contava que tinha que fazer um exame mental pra poder tocar, porque o terreiro era visto como casa de loucos. Minha mãe, Amara Mendes, sofreu muito nas décadas de 40 e 50 com essa perseguição aos terreiros de candomblé. Ela viveu esse momento da ditadura, dessa opressão, e teve que esconder seus orixás.”, contou Mãe Maria Helena.

A ialorixá Maria Helena Sampaio, de 52 anos, vive no bairro de Dois Unidos desde que nasceu e relembra uma época em que a região ainda não havia sofrido grandes intervenções urbanas. Por volta de 1980, ela recorda: “Quando eu tinha 8 anos, me lembro disso aqui. Não tinha nada, era só mato. O que tinha era uma fazenda linda, linda. Isso aqui era muito lindo. Então, o desmatamento, né, os veranistas, as coisas foram chegando, e as necessidades, as necessidades da população […] pra gente, que é zeladora da natureza, é muito triste. Eu peço muito a Deus, aos Orixás, que realmente dê consciência aos governando, que cuida da nossa Terra Mãe. Que realmente um olhar com mais carinho […] e eu também preservar, como tenho aqui o Iroko, uma árvore de 40 anos. Hoje é o único daqui de Pernambuco, que foi filho do sítio de Adão. É um cuidado também com a natureza, então isso preocupa muito.”

Registro publicado na rede social Facebook do Terreiro Ilê Obá Aganjú Okoloyá – Terreiro de Mãe Amara 

Dois anos mais tarde, surgiu um dos pontos sagrados mais conhecido do bairro, o Vale do Senhor, em 1957. Em 1958, foi inaugurada a Igreja de São Vicente de Paulo, que foi elevada à paróquia do bairro em 2017, tornando-se a 127ª paróquia da Arquidiocese de Recife e Olinda.

Chegamos ao final do nosso passeio, mostrando o porquê essa região da Região Político Administrativa (RPA) 2 , é tão importante para o Recife. Seus vestígios ao longo do tempo deram origem a um distrito superpovoado e repleto de diversidade. Mas ainda há muitos desafios a serem enfrentados na região — mas isso é um papo para outra reportagem.