Efeito Meme

muito além da diversão
na internet

Com quase três décadas de internet comercial, não é exagero apontar a existência de linguagens próprias para a comunicação nos meios digitais. De início eram as palavras abreviadas (vc, tb e tc, entre outras) que tanto renderam debates entre os detratores do “internetês”. Em seguida vieram os emojis, pequenos ícones que acrescentavam camadas de emoções às palavras, especialmente nos serviços de troca de mensagens instantâneas. Mais recentemente, os “memes” são a bola da vez no repertório da rede mundial, acrescentando camadas de significados que levam humor, sarcasmo e ironia para o conteúdo que o acompanha. Retiradas de cenas de filmes, novelas e personagens fictícios, essas criações da cibercultura são inofensivas mas o que acontece quando a imagem que viraliza como meme nas redes sociais é de uma “pessoa comum”?

Para uns, virar meme pode significar fama instantânea, pode ser também o caminho da descoberta para novos talentos ou carreiras mas nem sempre a reação é positiva. Em alguns casos, ter o rosto estampado em um meme pode ser fonte de estresse, desgaste e problema, especialmente quando se tratam de crianças ou adolescentes. Segundo a psicóloga Roberta Campos, a exposição na internet pode desencadear diversos problemas emocionais. “Já me deparei com situações em que a pessoa (que foi vítima de um meme) fica bastante ansiosa e angustiada por um longo período. Tempos após a exposição, o medo de que aquilo venha à tona novamente toma conta, vira uma certa paranoia” explica Roberta.

No caso de Gigi e Iago, personagens do vídeo “ O amor não correspondido”, a brincadeira entre irmãos gerou mais dois milhões de visualizações na web. O vídeo foi publicado no Youtube em 2006. A irmã mais velha de Iago, Laís Villachan, estava aprendendo a usar câmeras e resolveu filmar Iago, mas eles não imaginavam que fariam tanto sucesso. Laís fez o roteiro, a filmagem e a edição do vídeo. Iago, na época com sete anos, atuou como Gigi e como Iago. Dois anos após a publicação do “O amor não correspondido” os irmãos decidiram filmar uma sequência. “A gente fez o segundo vídeo depois que vimos que deu certo, queríamos ver qual que era, no que aquilo iria dar”, explica Iago.

Hoje, aos 21 anos, Iago Villachan acredita que a experiência o despertou para o mundo artístico. “O impacto desse vídeo na minha vida foi de abrir minha mente, despertar meu lado artístico, hoje em dia vejo que foi uma experiência muito interessante para a minha formação” conta.

Apesar de ter convivido com muitas brincadeiras e piadas sobre o vídeo, Iago não se queixa de bullying. “Na minha escola tiravam onda, brincavam, mas sempre tentei não levar para esse lado. Eu gostava de ter feito o vídeo, por isso não me incomodava”, relata Iago. Segundo a pedagoga Sandra Morgana, a idade de Iago na época em que aconteceu a exposição foi um fator determinante para que o vídeo não gerasse bullying. “Crianças são menos críticas quando se trata de imagem. O julgamento infantil transita no ambiente da brincadeira, da risada, a própria criança dá risada de si mesma. Se o caso acontecesse durante a adolescência, a possibilidade de gerar um bullying seria muito maior. Adolescentes tendem a julgar e reprimir impiedosamente” elucida Sandra.

A história de Iago, apesar do excesso de exposição, não deixou consequências negativas para a vida do rapaz, mas nem sempre as pessoas lidam bem com situações como essa.

Ananda Silveira, 20 anos, passou por uma situação semelhante, em menor escala, mas o impacto sobre ela foi bem diferente. Seu meme foi criado e compartilhado por colegas de sala. “Na época tinha quinze anos, minha mãe postou uma foto antiga comigo e me marcou no Facebook. Meus colegas de sala viram, fizeram piada do meu cabelo, fizeram uma montagem me comparando a um jogador de futebol. Fiquei muito mal, passei um tempo com vergonha do meu cabelo, só saia com ele preso”, conta Ananda.

O meme feito com Ananda não viralizou na internet, mas causou danos à sua autoestima por um bom tempo. “Estou com vinte anos agora, superei essa fase, mas isso me deixou insegura muito tempo. Eu amo meu cabelo, naquela época também amava, mas por causa das piadas eu passei muito tempo achando que estava errada, que deveria alisar, prender, esconder mesmo”, lembra. Ananda deixou a escola no ano seguinte. Junto aos pais, decidiu concluir o Ensino Médio em outra instituição. “Falei com meus pais, eles não quiseram ir na escola conversar com a direção. Concordamos que seria melhor trocar de colégio. No fim das contas não me prejudiquei nos estudos. Foi bem difícil me adaptar a outros professores, mas me saí bem no vestibular”, relata.

Carolina Florêncio, pedagoga, explica que casos como o de Ananda estão se tornando cada vez mais comuns. “O bullying vem se multiplicando por não ser denunciado. O medo e a vergonha silencia as vítimas. Então cabe a nós, educadores e aos pais intervir nessas situações, mas quando o bullying migra para as redes sociais fica mais difícil amparar esses jovens” explica.

Segundo o advogado Artur Ribeiro Pessoa, os pais de Ananda poderiam ter entrado com uma ação para cessar o compartilhamento da imagem entre os colegas. “A responsabilidade primeira é de quem postou. Então, se ela ou os pais entrassem com uma ação e o juiz determinasse a retirada dessas imagens, o primeiro a ser notificado é quem efetuou a publicação”, clarifica. Artur também explica que, em casos de desinteresse dos responsáveis na proteção do menor, o Ministério Público deve protegê-los. “Na omissão dos responsáveis, o Ministério público tem o dever de zelar pelas pessoas mais vulneráveis, nesse caso uma adolescente, mas poderia ser também com idosos. Então existe também legitimidade além dos responsáveis”, conta. 

Cinco anos após a situação, Ananda considera que aprendeu uma grande lição. “Me fez mais forte, acho que se tivesse apenas ignorado aquilo passaria mais rápido.Ter me importado foi o que deu poder às pessoas, agora eu sei que cabe a mim dar ou não poder pra me machucarem”, conclui. Apesar de não ter tido acompanhamento psicológico durante o acontecimento, ela acredita que isso teria ajudado a lidar melhor com a situação. “Quando tudo aconteceu, me fechei até para os amigos que tinha. Na outra escola foi difícil fazer amizade. Ficava esperando algum deles ver a foto do meu cabelo e começar tudo outra vez. Fui esquecendo aos poucos, mas acho que com um profissional me ajudando eu teria saído disso mais rápido e mais tranquila”, relata.

No caso de Ananda, a piada de mau gosto afetou apenas a ela, mas nem sempre os memes incomodam apenas a uma pessoa. Em 14 de fevereiro de 2020, a página Recife Ordinário postou um suposto aviso aos moradores do Edifício Le Parc Boa Viagem, condomínio de classe média alta da zona sul do Recife, sobre os maus hábitos de seus moradores. Entre os ofendidos está Joseane Oliveira, 42 anos. Mãe de Paulo César, 15 anos, e Paulo Matheus, 8 anos, ela teve que explicar aos filhos o que estava acontecendo. “Os meninos não tinham visto a postagem. Alguns amigos do meu marido foram a nossa casa e brincaram com isso na frente deles. Tive que contar e mostrar o que era. Eles tinham escola no dia seguinte e eu sabia que poderiam comentar na escola”, comenta.

A mãe dos meninos teve uma preocupação maior com a repercussão para o filho de 8 anos, já que na publicação havia menções a drogas e prostituição. “Paulo César já entende. Expliquei para ele que aquilo não era sobre o nosso condomínio, mas Matheus foi mais complicado, tive que explicar o que é maconha para o meu filho de oito anos. Tudo para que ele não fosse pego de surpresa por piadas dos colegas”, conta. Joseane acredita que ela e os filhos foram expostos a uma situação que os prejudicou. “Houve piadas no colégio, como eu já imaginava. Virou motivo de vergonha morar aqui. Os meninos tiveram que lidar com um problema de adulto, aquelas coisas não aconteciam aqui no prédio, mas ninguém acreditava. Era como se todo mundo que mora no Le Parc agisse daquela maneira”, relata Joseane.

O advogado Eduardo Teixeira Cavalcanti acredita que Joseane poderia ingressar no judiciário com uma ação de obrigação de fazer, que consiste em atos ou serviços a serem executados pelo devedor. No caso, o devedor seria a página do Recife Ordinário e a ação seria a retirada do post do ar. Segundo ele, a mãe representando os interesses dos filhos poderia solicitar uma reparação por danos morais. “A página abusou do direito de liberdade de imprensa, a informação que foi divulgada não era conteúdo jornalístico, era uma informação de âmbito privado que foi divulgada de forma pejorativa” explica. A publicação da página teve tanta repercussão que tornou-se o meme do carnaval. Muitas pessoas se “fantasiaram” de Le Parc para brincar carnaval nas ladeiras de Olinda.

Ao contrário de Joseane, Giovanna Magalhães, 26 anos, é moradora do Le Parc e se divertiu com a repercussão do meme. “Levei na brincadeira, achei muito legal ter virado meme no carnaval. Em todo lugar que eu chegava as pessoas faziam piada, perguntavam se ia ter festa no campinho e eu entrava na brincadeira”, conta. Giovanna afirma que em sua opinião a postagem não foi tão ofensiva quanto outros moradores do seu prédio acreditam. “O Recife Ordinário é uma página de humor, não tem pra que criar caso por uma brincadeira. Acho que se as pessoas do condomínio não tivessem feito tanto alarde a foto nem teria ficado tão famosa, quanto mais eles reclamam mais as pessoas tem vontade de fazer piada”, conclui.

A exposição na internet pode trazer problemas jurídicos e sociais para a vida das pessoas. Pedro Cordeiro, 17 anos, não se tornou exatamente um meme, mas publicou em suas redes sociais um vídeo em que falava sobre as escolas do Recife de maneira depreciativa. Pedro fez o vídeo no TikTok para brincar com os amigos, publicou no Twitter e em apenas três horas a publicação alcançou 100 mil visualizações. “Não tinha noção que ia bombar tanto, sabia que ia ter uma visibilidade mas não imaginei que ia ser tanto”, conta.

Diante da grande repercussão, ele decidiu falar com seus pais sobre o post. “Sempre tive uma relação muito aberta com meus pais. Mostrei o vídeo a eles, até acharam engraçado, mas me explicaram que aquilo poderia gerar um processo por que mostrei fachadas e falei os nomes dos colégios, e isso poderia mexer com a imagem deles” explica. Pedro apagou a publicação para evitar um problema judicial mas, no dia seguinte, o Recife Ordinário postou o vídeo. A família entrou em contato com a página, explicou a situação e pediu para que a postagem fosse deletada, mas quando o perfil apagou o vídeo já tinham alcançado a marca de 400 mil visualizações. “Não chegou a me causar problemas, mas poderia causar. Tive medo de ter que enfrentar processos de várias escolas”, pontua Pedro.

A advogada Belinda Guedes ressalta que a página do Recife Ordinário poderia ser responsabilizada apenas por publicar o vídeo de um menor de idade, mesmo que fosse consentido, o que não foi o caso. “Existe um mundo inteiro sobre essas questões do Estatuto da Criança e do Adolescente. Justamente essas divulgações de fotos, gravações e vídeos são passíveis de proibição. Essas condutas de crimes delitivos são muito prejudiciais a crianças e adolescentes” declara Belinda.