Escritoras que marcam a literatura brasileira

Foto: Freepik
No início do século XX, caracterizado pelo período de transição para o modernismo, tem-se um movimento inédito: as mulheres recebem maior visibilidade na sociedade. Um ponto fundamental que introduziu essa mudança foi, finalmente, a conquista do direito ao voto, ocorrida em 1932 – apenas há 90 anos -, e fruto de muita luta feminina que perpassou décadas e gerações.
A partir dessa evidência, as conquistas almejadas passam a ser o acesso aos estudos superiores e mais oportunidades de trabalho. Assim, com grupos femininos liderando expressivos setores políticos, considera-se que as mulheres puderam adquirir maior instrução educacional e literária.
“A revolução, no século XX, fez-se pela ascensão das mulheres em todos os campos. Na literatura não foi diferente, e somente nesse século as escritoras foram conquistando um espaço maior”, estabeleceu a pesquisadora e historiadora feminista Zahidé Muzart.
Dessa forma, as escritoras puderam ir além das prosas e dos poemas. E muitas delas se destacaram por romper com os estigmas comportamentais esperados para as mulheres. Dentre estas, Gilka Machado, que venceu um concurso literário de um jornal, mas teve a obra estigmatizada por se tratar de um livro de poemas eróticos; Rosalina Coelho Lisboa, que ganhou o primeiro prêmio do concurso literário da Academia Brasileira de Letras; Mariana Coelho, por estudar o feminismo e escrever sobre a evolução dessas conquistas femininas; e Adalzira Bittencourt que organizou a Primeira exposição do Livro Feminino.


Rachel de Queiroz marca gerações com suas obras. Animação: Maria Clara Monteiro
Com tanto sucesso, a identidade de Queiroz foi colocada em cheque. “Por ser livro de mulher e, o que na verdade causava assombro, de mulher nova. Seria realmente de mulher? Não acreditei. Lido o volume e visto o retrato no jornal, balancei a cabeça: Não há ninguém com esse nome. Deve ser pseudônimo de sujeito barbado. Depois, conheci Rachel de Queirós, mas ficou-me durante muito tempo a ideia idiota de que ela era homem, tão forte estava em mim o preconceito que excluía as mulheres da literatura. Se a moça fizesse discursos e sonetos, muito bem. Mas escrever O Quinze não me parecia natural”, escreveu Graciliano Ramos, em crônica publicada no livro Linhas tortas (1980).
As personagens de Rachel de Queiroz esboçam ideais feministas e revolucionários, expondo a repressão da mulher e a falta de expectativas. No entanto, a escritora nunca afirmou ser feminista e, muito menos, participar do movimento. “Apesar de tantas personagens roubando a cena ficcional e também de sua própria trajetória de vida, Rachel de Queiroz nunca vai admitir a legitimidade do movimento feminista. E, ironicamente, vai caber a ela, em 1977, inaugurar a Academia Brasileira de Letras”, aponta Constância Lima Duarte, doutora em Teoria Literária e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no artigo “Mulher e Escritura: Produção Letrada e Emancipação Feminina no Brasil”.
Foi a partir do pioneirismo das escritoras citadas acima que, aos poucos, as mulheres passaram a representar umas às outras. No entanto, quantas mulheres não são retratadas pela história? Quantos nomes estiveram envolvidos nas lutas femininas e, hoje, nem conhecemos? Quantas Gilkas, Marianas, Rosalinas, Adalziras, Raqueis e tantas outras passaram despercebidas diante de nossos olhos?
Construção do cânone literário
A invisibilidade das mulheres desdobra outros aspectos, como estudou Cláudia Maia, e percebe-se “o silêncio do cânon literário sobre as escritoras do passado e, sobretudo, as representações femininas, de gênero e da alteridade construídas pelas próprias mulheres em suas escritas”, como a pesquisadora aponta no artigo “Liberdade escrava, liberdade feminina: abolicionismo e feminismo de Júlia Lopes de Almeida em A Família Medeiros”.
A palavra “cânone” tem vários significados. Na literatura, entende-se como um conjunto de livros que são referências e/ou medidas de uma determinada época, movimento ou estilo. Mas quem determina quais obras e autoras fazem parte desse cânone?
Zahidé Muzart, também professora, editora e fundadora da Editora Mulheres, indagou sobre essa escolha. “O que resgatar? Todas as mulheres? Algumas? Quais? Como deveriam ser os critérios de inclusão e quais os de exclusão? Como encarar a questão do valor estético? Como repensar a literatura feminina de modo a que não fique para sempre encarcerada num gueto?”, questiona no artigo “A Ascensão das Mulheres no Romance”.
“Muitas escritoras não entraram no cânone devido a um corporativismo masculino. Nos séculos XVIII e XIX, os homens dominavam o espaço público, em todas as instâncias de poder. Eram os jornalistas, editores, tipógrafos, governantes, eram tudo. A crítica literária era feita por homens, também. Escreviam nos jornais e falavam dos lançamentos, das novidades. Então, na hora de fazer um dicionário biobibliográfico, de reeditar um livro, de escolher alguém para entrar numa antologia, eles escolhiam entre eles. Ignoravam as mulheres e a produção feminina. Elas ficaram na sombra. Foram apagadas. Eu falo do memoricídio que é esse conceito de apagamento, de assassinato da memória. Parece que as mulheres nunca existiram e que a literatura brasileira até 1930 foi só de homem. Mas isso não é verdade. Basta pesquisar um pouco que você vai ver centenas de escritoras atuando”, assegura Constância Lima Duarte.
“No cânone, não encontramos reconhecimento de tantas mulheres, quantas realmente são as que escreveram e se aventuraram nesse mundo literário”, observa Zuleide Duarte, doutora em Letras, professora universitária, escritora e crítica literária.
Entretanto, mesmo com essas dificuldades, algumas autoras foram disruptivas e, até os dias atuais, são lembradas.
Escritoras além do tempo
“Sou uma mulher que escreve porque, para mim, escrever é como respirar, faço para sobreviver”, expôs Clarice Lispector, no livro Encontros (2004). Esse sentimento comum é encontrado nas obras de outras mulheres que, da mesma forma de Lispector, escreveram para viver.

Escritoras que conquistaram espaço no universo literário. Arte: Maria Clara Monteiro
Patrícia Galvão, a Pagu, Clarice Lispector, Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles, Rachel de Queiroz, Cora Coralina, Carolina Maria de Jesus… São algumas das autoras que integram a literatura canônica brasileira.
No entanto, considerando o período histórico, e os relatos de escritos femininos anteriores, entende-se que outras autoras existiram e não entraram no cânone, pelas razões explicadas acima.
Os nomes, hoje conhecidos, fomentam e fortalecem novos debates sobre presença. Escrever, falar e discutir sobre as autoras também é, de alguma forma, reescrever a nossa própria narrativa.
Semana de Arte Moderna
Há mais de cem anos, durante os dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Theatro Municipal de São Paulo, aconteceu a Semana de Arte Moderna, evento que combinou a história artística e literária do Brasil.
Protagonizada por intelectuais ricos da sociedade paulistana, a Semana de 22 tinha como mote repensar as correntes literárias, que tinham grande influência da Europa, e, com isso, revolucionar a cultura do país.

Theatro Municipal de São Paulo, década de 1930. Foto: Arquivo Nacional
Ainda que considerada o marco do movimento modernista brasileiro, a história relembra que, antes mesmo dessa semana, o modernismo já estava em curso no Brasil. A bandeira da vanguarda já era levantada por diversos artistas, inclusive por mulheres, que quase não são citadas nesse famoso encontro, mas lutaram, igualmente, por rupturas, como foi o caso das pintoras Anita Malfatti, Regina Graz e Zina Aita, e da pianista Guiomar Novaes.
“A presença das mulheres não foi expressiva. O movimento de 22 foi, muito mais, uma propaganda do que um dirigir de caminhos. Essa necessidade de visibilizar a escrita das mulheres tem sido uma luta constante”, pontua Zuleide Duarte.
Além disso, o fator regionalismo ganhou destaque no debate. Afinal, as expressões artísticas pernambucanas, por exemplo, não eram consideradas arte, uma vez que os parâmetros estavam baseados na produção da região Sudeste? “O modernismo aconteceu em diversos momentos e em diversos estados. Em cada lugar, esse pensamento e ideias chegaram de um jeito”, expõe Duarte.
Ou seja, não significa dizer que o Brasil aderiu apenas a um movimento e estipulou como padrão a ser seguido. A representação artística desenvolve para além dos modernismos em curso no país, conquistas de legitimação de espaços e narrativas. A era pós-moderna levanta questões sociais como essenciais, e na arte não seria diferente.
As intenções que nortearam a Semana de 22 estão sendo discutidas, cada vez mais e de forma constante. Mesmo considerando a ousadia dos três dias, o objetivo de mostrar um Brasil mais real e que se reconhecesse na própria cultura não teve tanta adesão. Mas, por quê? Podemos considerar a Semana de Arte Moderna um verdadeiro marco para a arte e, principalmente, para a literatura brasileira?
“Meia dúzia de intelectuais paulistas se reuniram para comemorar o centenário da Independência do Brasil. Os ares modernistas, a renovação literária, já estavam pintando na cabeça dos mais ligados nas novidades da Europa, da França e da Inglaterra. Claro que a Semana teve uma personalidade importante, mas existiam várias escritoras naquele tempo que não entraram nesse evento, nem as paulistas foram convidadas para a festa”, comenta Constância.
Dessa forma, não significa que todas as regiões e artistas brasileiros aderiram ao movimento somente a partir de 22. Cada qual teve – e tem – o seu momento de revolucionar a arte, a cultura e a literatura.
Quatro mulheres estiveram presentes no evento. E de quais delas ouvimos falar quando o assunto é a Semana de 22? Os seus feitos anunciadores ficaram escondidos numa prateleira literária que ninguém acessava. Mas está na hora de revolucionar essa biblioteca e preencher os espaços vazios pelas palavras das mulheres.