Vanguardas e Pioneiras

Retrato das escritoras brasileiras do século XIX
Escritoras enfrentaram obstáculos para se firmarem. Foto: Pixabay

“Quando, no século XIX, as nossas primeiras escritoras, timidamente, ocultando-se em pseudônimos, temerosíssimas da opinião masculina dominante, tentaram publicar suas narrativas, tudo era visto com muita delicadeza como obras de senhoras e equivalendo-se ao crochê, tricot, bordado ou culinária. Mas atrás desse artesanato, existiram vozes que se fizeram ouvir até os dias de hoje e, de repente, encontramos um número grande de escritoras brasileiras”, escreveu Zahidé Muzart, no artigo A ascensão das mulheres no romance, publicado em 2010, no livro A Escritura no Feminino: Aproximações.

Muzart foi professora universitária, editora, pesquisadora, historiadora literária feminista e fundadora da Editora Mulheres, criada em 1955. A editora foi pioneira ao focar no resgate e no apagamento histórico de escritoras, da mesma forma que fez a pesquisadora, ao dedicar sua vida aos estudos da literatura produzida por mulheres.

Os seus esforços foram fundamentais para resgatar memórias e acontecimentos do passado. É comum perceber que, graças aos estudos de mulheres pesquisadoras, hoje, podemos ter acesso a tantas histórias que, na época, foram veladas. “Todo esse movimento de resgate, de renascimento de mulheres escritoras, no Brasil, é consequência dos estudos na linha de pesquisa Mulher e Literatura, que é herdeira direta dos estudos feministas e à tendência de uma crítica feminista interessada no estabelecimento de uma tradição literária escrita por mulheres: uma literatura própria”, conta Muzart.

“Quando as mulheres morrem, elas morrem para sempre, submetidas ao duplo fim da carne e do esquecimento. Os historiadores, os acadêmicos, os guardiões da cultura oficial e da memória pública sempre foram homens, e os atos e as obras das mulheres raramente passaram para os anais. Porém, hoje, a crescente presença feminina nos níveis acadêmicos e eruditos começa a normalizar a situação, e abriu-se todo um campo de novas pesquisas, feitas majoritariamente por mulheres, que tentam resgatar nossas antepassadas da bruma. Esse trabalho de recuperação quase arqueológica das esquecidas é, sem dúvida, importantíssimo, porque precisamos de modelos reais, precisamos saber que a vida não era nem é como a contaram para nós”,
escreve Rosa Montero, no livro Nós, Mulheres: Grandes Vidas Femininas.

O argumento de Rosa Montero reforça a importância de reatar os fragmentos de lembranças para se ter acesso à história em que as mulheres são tão protagonistas quanto os homens. “O mais espantoso é comprovar que sempre houve mulheres capazes de superar as mais penosas circunstâncias. Sempre foram poucas, é claro, em comparação com a grande massa de fêmeas anônimas e submetidas aos limites que o mundo lhes impôs, mas foram, sem sombra de dúvida, muitíssimas mais que as que hoje conhecemos e lembramos”, aponta Montero.

Zahidé Muzart estava envolvida no processo de resgatar as memórias das escritoras brasileiras. Foto: Divulgação/UFSC/ND

Corajosas e Desconhecidas

“As obras das mulheres sempre foram propensas a ser extraviadas ou esquecidas. Durante milênios, ser mulher implicava não ter acesso à educação e nem sequer a uma mínima liberdade de movimento”, continua a escritora e jornalista espanhola.

O acesso, ainda que tardio, às escolas primárias, em meados de 1867, teve influência da leitura. Nesses anos, a sociedade circundava, de forma majoritária, em torno dos interesses políticos, econômicos e sociais dos homens. Consequentemente, as mulheres eram vistas como meros acessórios dessa subordinação. “Excluídas e marginalizadas do sistema de poder, essas escritoras outorgaram voz aos desvalidos e excluídos, questionando as relações interraciais e de classe”, traz Zahidé Muzart.

“O campo da escrita, sobretudo em prosa, foi, durante muito tempo, interditado às mulheres. Elas eram vistas como incapazes de escrever e, sobretudo proibidas de certas leituras consideradas impróprias ou perigosas para sua formação. Além disso, a sociedade não via com bons olhos ‘uma jovem séria dedicar-se à escrita literária’. Assim, muitas escritoras escondiam seus escritos com receio de terem sua atividade, de certa forma clandestina, descoberta. No mundo literário predominantemente masculino, as mulheres eram vistas como intrusas e sua ‘aceitação passava por códigos burgueses e de boas maneiras’”, situa Cláudia Maia, no artigo Liberdade escrava, liberdade feminina: abolicionismo e feminismo de Júlia Lopes de Almeida em A Família Medeiros, disponível no livro Vozes do Gênero: Autoria e representações.

Alguns títulos de livros publicados no século XIX

Apesar disso, a professora Cláudia Maia demonstra que essas questões não impossibilitaram os avanços, mesmo que pequenos. “Isso não impediu que, no século XIX, muitas mulheres se tornassem escritoras de talento, embora não reconhecidas, como Maria Firmina dos Reis, que publicou a primeira obra abolicionista no Brasil, ou Emilia Freitas que produziu, no final do século XIX, um dos primeiros romances fantásticos do país”, expõe.

Ilustração de como seria o rosto de Maria Firmina. Arte: André Valente/BBC

Sem grandes informações sobre Emilia Freitas, o que se sabe vem das suas publicações de jornais. Foto: O Povo

As mulheres, sempre que puderam, escreveram seus pensamentos, ideias e sentimentos. Um grande nome que realizou tais feitos foi Júlia Lopes de Almeida, carioca nascida em 1862. Em seus livros, “as mulheres ocupam o centro das tramas e as histórias giram quase sempre em torno do universo feminino. Ela criou personagens femininas nada convencionais; mulheres autônomas, inteligentes e de atitudes”, explica Maia, que desenvolveu estudos sobre a autora.

Mesmo que Júlia Lopes de Almeida tenha abordado tais temas, quantas vezes ouvimos falar em seu nome? Pelo contrário, o grito do silêncio ecoa. “A porção invisível do iceberg de mulheres silenciadas começa a emergir agora, e tem dimensões colossais. Isso é formidável e libertador”, aponta Rosa Montero.

Quantas escritoras não foram “descobertas” por que não tiveram a chance? Tendo em mente o regionalismo e os espaços de legitimação e de hegemonia, como a imprensa e os locais educacionais, entende-se o que Muzart sente quando diz que é necessário “lutar pela inserção das mulheres no cânone literário é uma questão feminista: a inclusão das marginalizadas”.

“Não que não haja mais histórias para contar, ao contrário: quanto mais adentramos o mar remoto do feminino, mais mulheres descobrimos: fortes ou delicadas, gloriosas ou insuportáveis, mas todas interessantes. As águas do esquecimento estão repletas de náufragas e basta embarcar para começar a

vê-las.”

Rosa Montero

Mesmo as escritoras que conseguiram ser lidas nesse período logo caíram no esquecimento, como explica a doutora em literatura brasileira Constância Lima Duarte: “Algumas autoras foram aceitas pela sociedade letrada, mas eram mulheres brancas e ricas. Sempre da elite. Hoje, você se depara com centenas de nomes de escritoras do século XIX que sumiram depois. Desapareceram. Quando morriam, enterravam a obra junto com a mulher. Foram respeitadas na época, mas não entraram para a história literária”.

Júlia Lopes expressava ideais revolucionários em suas obras. Foto: Jornal O Rascunho

Conquistadoras, Vanguardistas

“São as mulheres que se atreveram a intelectualizar-se à custa de serem consideradas damas de pouca responsabilidade. São os pezinhos teimosos que se recusaram a dar passagem ao preconceito”, aponta Nara Queiroz, no livro Lute como uma garota: 60 feministas que mudaram o mundo.

Essas mulheres, ainda que desconhecidas, protagonizaram importantes conquistas vanguardistas femininas. Lutaram, nos espaços possíveis, para transformar os cenários literário e social da época.

Ana Eurídice Eufrosina de Barandas, Nísia Floresta, Clarinda da Costa Siqueira, Maria Firmina dos Reis, Josefina Álvares de Azevedo, Revocata Heloísa de Melo, Julieta de Melo Monteiro, Amélia Bevilacqua, Presciliana Duarte de Almeida, Francisca Senhorinha da Motta Diniz e tantas outras marcaram essas narrativas. 

Conheça abaixo as histórias dessas mulheres.

“Celebrar o passado é responsabilidade de quem está comprometido com a construção do futuro. Essas mulheres sofreram, e seu sofrimento é hoje o nosso festejo para podermos nelas nos inspirar. Elas nos dizem que podemos ser heróicas”. (Nara Queiroz)