Fabuloso futuro

O que contemporaneamente parece trivial no cotidiano poderia ser facilmente classificado como mágica há algumas décadas. Imagine, por exemplo, que uma divagação sobre uma rede social, como o Twitter, fosse mostrada para uma telefonista da década de 40. Provavelmente ela acharia essa invenção possível apenas no campo da ficção. Para entendermos melhor como são imaginados cenários sobre o futuro, a reportagem entrevistou o futurista Jacques Barcia, fundador do Futuring.Today e pesquisador afiliado do Institute For The Future.

Formado em jornalismo, Barcia trabalhou em veículos como a Folha de Pernambuco e o Jornal do Commercio. Na maior parte da sua atuação como jornalista, cobriu o setor de tecnologia. Em dezembro de 2013, foi trabalhar no Porto Digital do Recife. Após a execução de projetos e certificados, tornou-se futurista mais por uma consequência que por escolha. Para ele, se uma pessoa está estudando o futuro e comunicando isso para as pessoas, logo ela se torna uma futurista.

Augusto: Como é o trabalho de futurista?

Jacques Barcia: Atendemos muitas organizações. A maioria, no meu caso, privadas. Normalmente estão incomodadas com alguma incerteza e querem iluminar essa incerteza eliminando algumas dúvidas. Quando entro em jogo, a primeira coisa que eu faço é melhorar a pergunta. Muitas vezes as pessoas não perguntam o mais relevante ou não fazem perguntas pertinentes. Para isso, nós pesquisamos o assunto em questão, com foco nos aspectos de forças de mudança históricos, que moldam certos setores, mercados ou até a sociedade e envolvemos a organização nesse processo, facilitando seu entendimento com workshops. Não gosto de fazer a pesquisa e “entregar” o futuro. Eu coleto as evidências e tento interpretá-las junto com a organização. Criamos cenários e, finalmente, estratégias na qual oriento e indico que “devemos responder essa questão desta forma”.

Augusto: Há alcance para essa visão do futuro?

Jacques Barcia: Quando a organização nos procura, geralmente está querendo saber algo de longo prazo. Quando penso em futuro, penso em pelo menos 10 anos. Gosto de dizer que 10 anos é longe o suficiente de forma para que as divagações sejam ridículas. Tem uma frase de Jim Dator que traduz isso: “toda proposição útil sobre o futuro deve parecer, a princípio, ridícula”. Quando pensamos em futuro, temos que pensar em novos valores. Um exemplo é que se, no passado, alguém afirmasse que a IA iria definir com quem vamos nos relacionar ou até casar seria ridículo. Dessa forma, 10 anos é longe o suficiente para ser ridículo, mas perto o suficiente para tomarmos ações. Por isso, geralmente, pensamos em 10, 20 ou 30 anos. 5O anos já é algo bastante avançado, mas alguns futuristas já pensam daqui a 100 anos.

Augusto: O futurista não é um vidente, certo?

Jacques Barcia: Uma coisa muito importante pra dizer é que futuristas não preveem o futuro, pois o futuro não pode ser previsto, mas podemos entender algumas possibilidades. Por exemplo, neste momento ninguém previu o coronavírus mas, há 10 anos, alguém já falava na possibilidade de uma pandemia. Desde a consolidação da globalização, futuristas falam sobre como as cidades e a concentração populacional com grande circulação de pessoas se transformariam em focos de pandemias. Na verdade o que aconteceu aqui foi muito maior. Se for analisar bem, o Ebola, a gripe suína, o zika e a chikungunya foram focos locais levados a outros centros por causa da intensa circulação de pessoas. Então passamos por isso novamente: o coronavírus não estava nos cenários, mas tínhamos como entender que essa concentração de pessoas em megacidades com a facilidade de mobilidade vão facilitar pandemias que terão impacto geral. Não podemos prever o futuro, mas podemos antecipar as possibilidades e nos prepararmos para esse futuro.

Augusto: Você já prestou serviço para um cemitério, certo? Como foi?

Jacques Barcia: Na verdade a gente fez um trabalho para o Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (SINCEP), uma associação que nos procurou querendo entender a “morte da morte”. Basicamente eles estavam preocupados com a ideia de hiper-longevidade e começaram a se perguntar sobre como vai ser quando as pessoas pararem de morrer. A gente melhorou essa pergunta para ‘como seria a morte dos rituais de morte?’. Era sobre como os jovens não iam mais a velórios, como as redes substituem o papel de prestar homenagem e contato com quem já se foi. Então esse negócio estava mudando e fizemos um trabalho com eles para mostrar novas possibilidades sobre como, por exemplo, tecnologias e mudanças culturais podem transformar seu negócio.

A gente materializou uma possibilidade de futuro através de uma experiência ou de um artefato. Nesse caso, fizemos um protótipo de um velório de 2035, com atores e roteiro, e apresentamos sem dizer que simulava 2035. No fim da encenação, que foi interativa, com atores também na plateia, revelamos a “farsa”. O interessante é que uma das coisas que pesquisamos é que vontades e personalidades poderão ser simuladas de forma muito precisa no futuro. Tecnologias podem fazer com que personalidades de mortos continuem interagindo com seus entes queridos por algum tempo.

No caso da encenação, a pessoa que tinha morrido estava representada por uma voz que teria sido construída através das memórias que a morta tinha postado nas redes sociais. Isso pode ser útil para contratos inteligentes, como um testamento, que funciona de forma que se coisa x acontecer, automaticamente a coisa y acontece. Imagine você colocar um testamento não em um pedaço de papel, mas em um software que fala e age como a pessoa que escreveu. Isso tudo foi para falar como, no futuro em 15 ou 20 anos, podemos ter um outro tipo de relação com os mortos através de contratos inteligentes e inteligências artificiais.

Augusto: E empresas comuns também são curiosas sobre o futuro?

Jacques Barcia: Prestamos esse serviço para uma fabricante de carrocerias chamada Randon. Ela tem um banco de consórcios para caminhoneiros comprarem carrocerias. Para eles, fizemos um trabalho sobre o futuro do dinheiro, de forma que ajudamos a entenderem como as noções de dinheiro e riqueza podem mudar. Nesse processo a gente facilitou a descoberta de várias outras possibilidades de negócios. 

Augusto: Houve algum cliente não comercial?

Jacques Barcia: Teve o Museu do Amanhã. Fiz uma pesquisa sobre o futuro do trabalho para daqui a 50 anos e um dos resultados serviu como base para a criação de uma mostra chamada Ofisuka. O interessante é que um dos resultados, por um lado, foi o surgimento do trabalho hiper-criativo, que é a ideia de que em 50 anos teremos uma nova forma de trabalhar e colaborar de forma criativa através de interfaces cérebro a cérebro. Ou seja, ligar a mente à uma rede de inteligências (mentes), com a possibilidade de criar e moldar ideias e sonhos, criando coisas absolutamente intangíveis. 

O outro é que por causa desse novo tipo de interface, elementos do mundo particularmente animal estariam inseridos no mercado de trabalho, com animais sendo remunerados. A ideia de que o trabalho de um bosque é se manter, por ser essencial, e que o trabalho natural dele é ser um agente de ecossistema. Por isso, ele seria remunerado e essa remuneração seria revertida para ele próprio, de forma que ele passaria a ser considerado uma pessoa. Uma terceira possibilidade é que a barreira entre vida pessoal e trabalho vai deixar de existir. Momentos como este, que estamos em confinamento, mostram que momentos de trabalho, de vida e de lazer serão os mesmos. Eu iria, por exemplo, não somente transformar meus colegas de trabalho na minha família estendida, mas o contrário também. Então vai existir a possibilidade de se criarem laços familiares formais, mesmo que temporários, para que essas pessoas trabalhem no ambiente familiar. As pessoas poderão casar para fazer um trabalho em uma espécie de junção de escritório e casa para cumprir esse objetivo de projeto. Isso poderia ser desfeito ou reconfigurado depois. 

Todos esses cenários possuem implicações muito profundas, pois criar uma sociedade em que pessoas compartilham e visualizam ideias numa realidade estendida extrema, ou de que a ideia de que animais possuem inteligência, compartilhando ideias, é muito impactante. A pergunta mais importante, porém, é sobre como vai ser quando o capital e os meios de produção forem completamente intelectuais? O que acontece quando o trabalho e a personalidade for estendida para além dos humanos, quando o ecossistema ganhar status de pessoa ou animais tiverem seu trabalho e sua vida forem remunerado e protegidos? O que acontece quando máquinas poderem ter independência e fizerem trabalhos para elas?

Augusto: Há quem imagine super-humanos no futuro por causa dos avanços da nanotecnologia e da saúde. Como fica o conceito de igualdade quando só um grupo tem acesso a esses recursos?

Jacques Barcia: A gente já faz isso, somos super-humanos em relação aos humanos de 100 anos. Já temos ferramentas sociais integradas ou coisas como óculos, que faz com que eu corrija uma limitação que eu tenha. Alguns filósofos já dizem que já somos ciborgues. Tem um livro chamado Manifesto Ciborgue que argumenta isso, pois a gente já integrou essas ferramentas. O smartphone é uma parte estendida do meu cérebro, seja memória, comunicação ou sistema de navegação. Quando saímos sem, nos sentimos inseguros e sem direção. Não tem como marcar algo comigo se você não tem como mandar um Whatsapp. Já integramos essas coisas. Há algo mais profundo, como marca-passo e transplante de órgãos: “eu vou receber o rim ou os olhos de uma pessoa que morreu”. Se você dissesse isso há 100 anos você iria para a fogueira e, há 50 anos, dizer isso seria indecente. Nos tornamos super em relação às gerações anteriores. Podemos até considerar uma uma categoria de humanos, mas que só pode ser identificada em comparação a uma quantidade de gerações anteriores. 

Por outro lado, uma classe de super-humanos já existe: é o 1% mais rico do mundo. Não por causa de implantes tecnológicos, mas por causa de concentração de renda. Essas pessoas possuem superpoderes, vivendo em outra esfera e outra categoria que não temos acesso, por causa desse implante chamado concentração de renda. 

Augusto: Como essas tecnologias influenciam o poder? 

Jacques Barcia: A gente tá partindo para um momento de automação do poder. O poder é a capacidade que eu tenho de fazer com que pessoas e organizações façam coisas que elas normalmente não fariam. Ou, ao contrário, a capacidade de fazer coisas que eu normalmente não faria, seja facilitando ou impedindo. Esse poder de coerção estava reservado a pessoas, seja a polícia, o governo ou a direção de uma organização. Mas, claro, isso poderia acontecer também pela confiança e autoridade de conhecimento. 

O que está acontecendo é que estamos conferindo poder aos algoritmos, automatizando e privatizando o poder. A ideia do carro autônomo é isso. O sistema legal tem a presunção da inocência e, mais importante, as pessoas possuem a liberdade para cometer o crime, ainda que você não deva fazê-lo. E, dependendo da justificativa para cometer o crime, o crime talvez seja plausível e o indivíduo pode não ser punido. Por exemplo, você não pode roubar, mas se minha família tá com fome e eu roubar, talvez eu não seja punido por ser uma situação extrema. Essa possibilidade existe e eu ainda vou ser julgado.

No carro autônomo isso não acontece. Vamos supor que estou saindo do Recife Antigo para Boa Viagem e sigo pela Via Mangue. A via tem um limite de 60km por hora mas, se eu estivesse com uma urgência como alguém morrendo em casa, eu iria enfiar o pé no acelerador, tomar uma multa e depois argumentar para não ser punido. No carro autônomo isso não acontece. Ele tem, por software, uma limitação de velocidade de acordo com o GPS. Não tem como ele ir mais rápido. Você pode, talvez, mandar uma mensagem, esperar ser atendido para contar sua história a alguém da Uber, que pode ou não se compadecer para liberar a velocidade. Nesse tempo alguém pode morrer, pois o limite de velocidade da via passa a estar dentro do carro, não fora dele. O carro passa a ter poder, me fazendo não fazer algo que eu faria. E esse poder não é negociável. Ele poderia ser alterado via protocolo, mas o exercício não pode ser alterado. Ele passa a ser privado e automático. Automaticamente eu não posso fazer algo que normalmente não faria e ele passa a ser gerido por uma lei privada. As implicações desse tipo de conceito são bastante sérias.