Nós fazemos parte do futuro?

O fim da humanidade está associado a tecnologias como inteligência artificial e robótica há décadas, pelo menos nos campos da literatura e do cinema. Dos exterminadores da Skynet (franquia The Terminator) às máquinas escravocratas de Matrix, a ficção científica já deixou clara a mensagem de que a sociedade contemporânea pode criar seu próprio fim ao conceder o dom da inteligência a seres inanimados. A realidade, porém, mostra o possível fim da sociedade como a conhecemos como resultado de rupturas menos objetivas e mais lentas, com uma substituição passiva, planejada e trágica de determinados grupos sociais por máquinas, de forma que, pouco a pouco, o próprio lugar do humano no futuro esteja em xeque.

Para autores como Bill Joy, na verdade, nosso futuro já está condenado e a causa não será uma tomada de poder pelos robôs. O cientista da computação, desenvolvedor do Java e co-fundador da Sun Microsystems, ainda em 2000, escreveu um catártico artigo na edição da revista Wired intitulada Why the future doesn’t need us, na qual explica como os sonhos da robótica irão se transformar em pesadelos, dadas as premissas e objetivos dos detentores de poder e capital para ditar os caminhos nos avanços dos campos da Inteligência Artificial e da robótica. Todos os perigos apontados por Bill Joy parecem tomar forma nestas primeiras décadas do século 21, e se relacionam com a falta de uso das massas trabalhadoras uma vez que elas tenham perdido a função de exploração.

Joy afirma que, uma vez que as máquinas cheguem em um nível pleno de execução de tarefas com performance melhor que a humana, alguns cenários podem se desenvolver. Cenários esses que haviam sido previstos por Theodore Kaczynski, terrorista conhecido como Unabomber, que assassinou três pessoas e feriu diversas outras durante sua campanha de 17 anos contra a tecnologia. O primeiro prevê que, por tomarem decisões melhores, as máquinas terão o poder de funcionar sem a supervisão humana, pois as pessoas não mais entenderiam como essas decisões seriam tomadas. Sendo assim, é impossível prever o comportamento dessas máquinas inteligentes, de forma que nosso destino estaria nas suas mãos através de um processo de dependência. Nesse caso, desligá-las seria um sinônimo de suicídio, pois a organização social iria colapsar.

“Podem argumentar que a raça humana nunca seria tola o suficiente para entregar todo o poder para as máquinas. Mas não estamos sugerindo que a raça humana poderia voluntariamente dar o poder para as máquinas ou que essas máquinas poderiam levantar seu poder propositadamente. O que sugerimos é que a raça humana poderia facilmente permitir ser arrastada para uma posição de tamanha dependência das máquinas que não teríamos outra escolha prática além de aceitar todas as decisões delas. Como sociedade, nossos problemas se tornariam mais e mais complexos, da mesma forma que as máquinas se tornariam mais e mais inteligentes, então pessoas deixariam máquinas tomarem ainda mais decisões para elas, simplesmente porque decisões feitas por máquinas trariam melhores resultados que as feitas por homens”, argumenta Bill Joy, que faz questão de afirmar não ser apologista do Unabomber.

Adriano Pila, mestre e doutor em Ciência da Computação e Matemática Computacional, explica: “Nós seres humanos somos fantásticos em termos de raciocínio, percepção de imagens, sons, movimento. O mais potente computador não consegue fazer isso. Entretanto, os computadores são excelentes em fazer cálculos complexos sequênciais. E o que está por trás dessa revolução é um conjunto de coisas. Primeiro uma questão de conectividade, com muitos dispositivos conectados à internet alimentando muitos computadores em nuvem. Isso deve ser multiplicado por 1.000 com o advento do 5G, com conexão rápida para tudo (seus eletrodomésticos, carros, eletrônicos) estar ligado à nuvem. Na nuvem, estão fazendas de computadores recebendo toda essa informação. Logo teremos no mercado os computadores quânticos, que devem multiplicar a velocidade atual por 100 milhões. Bom, cenário montado. Muitas informações, muita conexão, muito poder de processamento, muitos algoritmos de inteligência artificial conversando entre si nessa infovia. Digamos que uma bomba de pulsos eletromagnéticos fosse detonada sobre os Estados Unidos. Estima-se que isso causaria um apagão tecnológico capaz de aniquilar 4 milhões de pessoas em poucas semanas, somente por causa da dependência tecnológica atual. Bancos sem sistema significa que o cidadão não consegue sacar dinheiro. Mercado sem sistema dificilmente consegue vender. Policia sem sistema não consegue monitorar bandidagem e agir etc”.

Um segundo cenário descrito por Kaczynski é que o controle humano sobre os sistemas artificiais inteligentes será mantido. Nesse caso, o controle dessa tecnologia e, consequentemente, da sociedade, estaria nas mãos de uma pequena elite detentora do capital tecnológico. As massas, que antes sustentavam a pirâmide da concentração de riqueza, se tornariam supérfluas, pois o trabalho humano não seria mais necessário. Se essa elite for impiedosa, como é natural de todas as elites na história humana, ela poderia simplesmente decidir exterminar as demais classes. Se não, investiriam em propaganda e técnicas para reduzir a taxa de natalidade até o ponto de o planeta ser deixado somente para si. Previsões apontam, porém, que um sistema de inteligência artificial capaz de desencadear esses cenários só deve existir em décadas.

“Hoje a IA disponível é a chamada ‘IA fraca’ (Weak AI) ou ‘IA estreita’, não há nenhum indício científico que a IA irá alcançar ou ultrapassar o nível de cognição dos seres humanos (Strong AI). Apesar das inúmeras especulações a cerca dessa possibilidade, na minha opinião e dos cientistas que acompanho, ela ainda está no campo da ficção. As pesquisas entre especialistas indicam que essa possibilidade pode se concretizar daqui a um período entre 70 e 100 anos, o que é extremamente longo para previsão científica e, por isso, se torna ficção. Parece razoável fazer previsões para os próximos 10 anos, e centradas em processos que já estão sendo testados em laboratório. Exemplo: a minimização ou eliminação do viés contido nos dados nos modelos de Deep Learning”, aponta Dora Kaufman, socióloga e doutora no Programa de Tecnologias de Inteligência e Design Digital da PUC-SP.

Mesmo assim, sintomas apontados no artigo de Bill Joy já podem ser sentidos contemporaneamente. A história mostra, também, que o medo da marginalização e exclusão da sociedade não é exclusivo deste século

Entre os anos 1811 e 1816 um novo tipo de movimento de trabalhadores industriais tomou a Inglaterra. Chamados de “ludistas“, esses profissionais foram meros espectadores das primeiras décadas da primeira Revolução Industrial e, com o crescente deslocamento de postos de trabalho por causa das máquinas, eles se organizaram em grupos para lutar contra a crescente automação. Sua principal ferramenta de reivindicação foram ações diretas que consistiam em invasões de fábricas e quebra de equipamentos industriais. Esse movimento, que deu à luz as primeiras conquistas trabalhistas, não lutava primeiramente contra o desemprego, mas contra a precarização imposta pela nova configuração das fábricas. Mais de dois séculos depois, novos desafios se impõem contra a classe trabalhadora com o avanço da Inteligência Artificial e da robótica, que anunciam uma possível quarta Revolução Industrial. Em ambos tempos históricos, feridas do capitalismo foram expostas.

Na primeira Revolução Industrial, máquinas substituíram artesãos especializados e deslocaram esses trabalhadores ao posto de simples operadores de máquinas, cujo salário era menor e carga horária maior. Dessa forma, a exploração barata permitiu a ampliação dos lucros que, por sua vez, alimentaram o investimento em novos maquinários. Às vésperas da anunciada quarta Revolução Industrial, além dos trabalhadores da manufatura, profissionais como agentes de viagem, telefonistas e corretores de imóveis já estão sendo substituídos por sistemas digitais inteligentes. Desta vez, os trabalhadores substituídos encontram uma alternativa na economia de plataforma, liderada por empresas como Uber, iFood e Rappi. Para esse tipo de organização, pessoas trabalham sem vínculo empregatício e são chamadas de empreendedoras.

“O buraco é mais embaixo”

Jacques Barcia, futurista, fundador do Futuring.Today e pesquisador afiliado do Institute For The Future, aponta: “Já consideramos desemprego tecnológico como algo que acontece de tempos em tempos depois da Revolução Industrial. Mas a automação vem substituindo, agora, além do trabalho físico, também o intelectual. Ele vem sendo substituído ou mediado por plataformas. A velocidade com que isso acontece tem um impacto muito grande. Coisas como o coronavírus mostraram que esse buraco é muito mais embaixo: muitas coisas máquinas não fazem, muitos trabalhos não podem ser substituídos nesse curto prazo e as promessas da economia de plataforma estão falhando”.

Como conta o pesquisador, a promessa da economia de plataforma consiste no discurso de que qualquer um pode ter trabalho, pois o trabalhador poderia se conectar a uma plataforma e usar seus recursos para ter renda. É o caso de quem tem um carro e roda no Uber, ou quem tem uma moto ou bicicleta e faz compras no Rappi. “A realidade é que falta segurança social, o que impede uma economia sustentável. Isso permite que, durante a pandemia, por exemplo, alguns serviços continuem funcionando, mas sem a segurança social para que o trabalhador seja acobertado. Mas isso vai além da economia de plataforma e reflete toda a incongruência da estrutura econômica dos últimos 50 anos, que é extremamente ligada ao pensamento liberal ou neoliberal, do mercado regulando tudo e a falácia de que se as pessoas fizerem bem seu serviço elas terão um futuro. Hoje a gente vê que não é assim, as pessoas precisam de condições para operar e se sustentar”, completa Jacques.

Leonardo Lima, mestre em Design, Antropólogo e coordenador do Laboratório de Objetos Urbanos Conectados (LOUCo) do Porto Digital do Recife, propõe um contraponto às críticas: “Enxergo essa questão da economia de plataforma como uma discussão da classe média. Tem uma galera que melhorou de vida, apesar da exploração. Mas tem muita gente que não percebe que muitos já viviam explorados desde a realidade anterior. O que acontece é que a classe média tá perdendo dinheiro e tá ficando furiosa, não reconhecendo que o Uber foi uma melhoria de vida para muitos”.

Ele propõe que imaginemos um trabalhador cuja renda é um salário mínimo, em um emprego no qual é submetido a assédio e horas extras não remuneradas. “Imagine que agora ele pode trabalhar para si e, mesmo pagando um carro e rodando pelas mesmas 10h, como no emprego tradicional, ainda consiga tirar mais dinheiro e ter mais qualidade de vida. É claro que ele vai achar boa essa economia. Nós, a classe média, somos quem acha isso terrível. Corretamente, consideramos o mínimo conquistas como férias, jornada de 8h e 13º salário, mas gente do mundo todo já vive com bem menos que isso”.

Essa migração de trabalhadores dos empregos formais para a economia de plataforma seria um dos primeiros sinais da nova onda de desemprego tecnológico, que se iniciou ainda em 2017 e pode retornar em breve. O estudo O Brasil precisa se preparar para a era da inteligência artificial?, realizado pelo economista brasileiro João Moraes Abreu e pela cientista em computação russa Katya Klinova, ambos da Harvard Kennedy School, mostra que 44 milhões de brasileiros ocupam empregos com alta probabilidade de automação nas próximas décadas. Ou seja, 53% da força de trabalho do Brasil está ameaçada. O número é alto se comparado com o já alarmante relatório Employment Outlook, feito pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e publicado em 2019, que mostra 14% da força de trabalho da comunidade internacional ameaçada pela automação.

A pesquisa de João e Katya também estabelece um comparativo com o mercado de trabalho dos Estados Unidos, no qual estima-se que 47% dos postos de trabalho tem alta chance de serem automatizáveis nos próximos anos. O índice funciona assim: profissões em alto risco são as que encontram-se com mais de 70% de chances do desenvolvimento de uma tecnologia efetiva que elimine a necessidade de trabalho humano direto. As com média chance de automação estão com risco entre 30% e 70%, enquanto as com baixa chance de automação têm um risco calculado em menos de 30%. “Os números, seja para os EUA ou para o Brasil, não indicam qual a chance de a automação ocorrer de fato, já que isso depende de fatores econômicos como custo de mão de obra local. Mas eles indicam a probabilidade de existir capacidade tecnológica nos próximos anos para desempenhar as atividades de cada ocupação sem a intervenção de humanos”, alerta o pesquisador na publicação, que pode ser encontrada em inglês, na íntegra, aqui.

A pesquisa mostra, ainda, que as atividades com maior risco de serem superadas na corrida tecnológica para automação são as de motorista (98%) e auxiliar de escritório (97%). Somadas, as duas classes são responsáveis por empregar mais de 5,3 milhões de brasileiros, de acordo com dados do PNAD divulgados no segundo semestre de 2018. 

Nesse sentido, a automação pode ser um agente catalisador na já crescente onda de desemprego que assola o Brasil. No país, de acordo com pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado em março, existem atualmente 12,9 milhões de desempregados no Brasil, o equivalente a uma taxa de 12,2% de desemprego. Em um cenário de demissões em todos os setores, um dos únicos que abriram postos de trabalho, de acordo com pesquisa do IBGE de 2019, foi o de transportes. O saldo positivo foi associado a aplicativos como Uber e 99. Além dos motoristas, saltou também o número de motoboys em estados como o Rio de Janeiro. De acordo com a Confederação Nacional do Comércio (CNC), o número desses profissionais no estado cresceu, entre 2008 e 2018, 74%, atingindo o número de 5.085 trabalhadores.

“Conforme o Brasil avança em uma crise econômica com desemprego substancial, uma parte significativa da população brasileira procura gerar renda através da gig economy, como pode ser visto com o boom de trabalhadores nos serviços de delivery e corridas compartilhadas”, escrevem Bruno Moreschi, artista visual e coordenador do instituto INOVA USP, e Gabriel Pereira, PhD em formação em Estudos da Informação e Design Digital na Universidade de Aarhus (DK), no artigo The Brazilian Workers in Amazon Mechanical Turk – Dreams and realities of ghost workers. Para Jacques Barcia, “a automação e a economia de plataforma formam o plano do próximo estágio da economia liberal. É desobrigar os detentores de riqueza de prover certas seguranças, provendo o intermediário entre o prestador e o tomador de serviço. As implicações disso já eram bastante claras e a Covid-19 mostrou que a gente precisa de um formato mais justo”.

Como afirmou o economista João Moraes de Abreu, o que vai definir se as tecnologias de automação serão implementadas ou não serão quesitos como o valor da mão de obra. Além disso há a questão do investimento para trocar os humanos por máquinas e, também, a aceitabilidade do público que irá consumir ou usufruir um produto ou serviço feito de forma automatizada. Esses obstáculos, porém, podem ser revistos com o contexto da pandemia do novo coronavírus e, consequentemente, da crise econômica que deve se agravar no Brasil por causa da doença e das medidas que o Governo Federal vem tomando para lidar com o vírus.

O passado dá exemplo de que uma crise pode se transformar uma “oportunidade” para a automação: estudo do McKinsey Global Institute (MGI) mostra que, nos EUA, nos três anos após a crise de 2008, 44% das firmas só conseguiram reduzir despesas através de mecanismos de automação. Com o coronavírus, a história pode se repetir de forma mais trágica, com automação não somente da linha de produção.

“Agora, com o coronavírus, enxergo as pessoas que tomam essas decisões como cegas para o elemento humano. Nesses momentos, empresários só enxergam oportunidade, como usar o vírus como desculpa para colocar o carro automatizado e vender essa proposta como uma boa alternativa. Existe o entrave social das pessoas não se sentirem bem ao lidar com robôs, mas acho que depois do coronavírus esse medo pode aliviar e essa automação pode ser acelerada. Já existe tecnologia para, por exemplo, a MC Donald’s funcionar totalmente automatizada, desde a preparação da comida até o atendimento. Basta ver que nas franquias já existem caixas automatizados. O mesmo vale para as empresas de ônibus, que querem eliminar o cobrador. No drive-thru, já falamos com uma caixa. Vamos notar a substituição dessas pessoas? Vale dizer que, na verdade, tratam-se de trabalhadores que já atuam como robôs, pois fazem a mesma coisa todo dia. Vivemos um momento no qual temos que educar as pessoas para que elas se tornem melhores humanos, desenvolvendo habilidades como empatia, colaboração e inteligência emocional. Técnica por técnica, como adestramento de humano, não vamos precisar mais. Pois o robô vai fazer mais e melhor, sem férias, preguiça ou dribles”, comenta Leonardo Lima. 

Como podemos perceber, o processo de demissões e automação empurrando mais trabalhadores para a informalidade da gig economy é alvo de diversas críticas. Nesse sentido, é precisa a afirmação de que a “automação não substitui o trabalho, ela o desloca”, de Lilly Irani, pesquisadora de políticas culturais de alta tecnologia e professora da Universidade de San Diego (US). Resta o questionamento, porém, do que acontece quando as próprias empresas que lideram essa economia de plataforma, principal fonte de renda para desempregados, planejam automatizar seus serviços. O Uber já está desenvolvendo os carros autônomos, assim como o iFood busca realizar suas entregas através de um sistema de drones com navegação sem pilotos.

“A estratégia explícita do Uber é ter no futuro uma frota de carros autônomos, existem vários projetos pilotos sendo testados em diferentes partes do mundo. E, sim, os carros autônomos vão gerar desemprego em massa, levando em consideração que hoje são cerca de 100 milhões de motoristas de Uber no mundo. O mesmo acontece com relação aos serviços de entrega, também com tempo contado. Já existem várias experiências de entrega autônoma, inclusive do próprio iFood, veja seu novo robô de entrega nos shoppings que será estendido para ambientes internos em geral. O movimento de inovação sempre visa prestar melhores serviços, mais rápidos e mais baratos, e melhores produtos, com menor custo e personalizados, e as tecnologias de IA reduzem custo e aumentam a eficiência. Na minha visão, o maior impacto social negativo da IA é justamente no mercado de trabalho e a sociedade tem que tomar consciência e agir no sentido de minimizar os impactos negativos”, comenta a socióloga Dora Kaufman.

O relatório Employment Outlook, da OCDE, (o mesmo que aponta 14% dos postos de trabalho com extinção por automação nos próximos 15 ou 20 anos), também visa orientar os países membros da comunidade internacional. “Essas mudanças resultam em ansiedade sobre o futuro. O crescimento da desigualdade de renda e oportunidades, distorções na concorrência transfronteiriça, a percepção de injustiça fiscal, o risco de mudança climática e a desaceleração da economia são todas causas para preocupação. (…) Nesse contexto desafiador, é crucial reforçar nossa atenção nas pessoas e no bem-estar. Na era digital, é importante que as pessoas sintam que contarão com algum suporte caso elas se percam, e que serão ajudadas na sua busca por novas e melhores oportunidades. O ritmo e a velocidade dessas mudanças requerem ações políticas ágeis e decisivas, inspiradas por um novo tipo de crescimento, mais inclusivo e mais sustentável”, alerta a organização econômica intergovernamental. O que se tem feito, porém, não se aproxima dessas orientações.

“Estudos mostram que vai haver uma grande substituição de mão de obra nos próximos anos por IA, que pode executar tarefas que não exigem um raciocínio grande ou mesmo apenas analisar dados a partir de uma hierarquia não tão rígida. Ou seja, o que não precisar de um humano vai ser automatizado. Dentro dessa perspectiva, o governo está investindo em aumentar o horizonte de exploração, barateando ainda mais a mão de obra para evitar a demissão dessas pessoas. Esse trabalhador vai ser ainda mais tratado como uma peça da máquina, não como uma pessoa, porque ele é mais barato. A Uber usa o humano como um protótipo, pois o objetivo é chegar no ponto de automação. Eles não querem pagar 70% para uma pessoa rodar. Eles querem ficar com 100% através de robô, da mesma forma que as outras empresas”, afirma Leonardo Lima.

Trabalhadores órfãos do Uber, iFood e Rappi poderiam, ainda, recorrer ao trabalho de ghost workers para a Amazon. Entenda na matéria Pode a inteligência artificial criar arte? quem são esses trabalhadores fantasmas e como, através de uma plataforma anônima de trabalho digital repetitivo, os chamados Amazon mechanical turks fazem a “mágica” mecânica da inteligência artificial.

Nem máquinas, nem rebanho: UM FUTURO PARA humanos

Transformou-se, ou, talvez, perdeu-se pela história o significado do termo ludista. Se no século 19 foi associado aos trabalhadores que quebravam as máquinas que iriam substituí-los nas fábricas (tendo como possível origem o operário Ned Ludd, supostamente o primeiro da sua classe a promover a ação de sabotagem), no século 20 é designado aos conservadores que não aceitam os avanços tecnológicos nas mais diversas áreas. Atualmente, é adjetivo depreciador facilmente disparado contra pesquisadores da área da tecnologia e da inovação que se atrevem a criticar o universo do qual fazem parte.

Em 1999, por exemplo, o New York Times publicou um comentário de Gregg Easterbrook com o título Comida para o futuro. Nele, o colunista afirma que, algum dia, arroz terá vitamina A embutida. A publicação vai de encontro às criticas de ambientalistas como Amory e Hunter Lovins, tachados como ludistas por pedirem precaução nas pesquisas desenvolvidas somente pelo seu potencial econômico, deixando de lado o fator evolucionário. Isso anos antes de tecnologias como a máquina de agrotóxicos autônoma ou o uso de óculos realidade virtual para acalmar vacas leiteiras enclausuradas em ambientes pequenos.

Talvez o termo tenha se tornado ofensivo desta forma ao ser associado ao terrorista Unabomber. O caso de Theodore Kaczynski chama atenção, inclusive, por tratar-se de uma pessoa diretamente ligada ao campo da tecnologia. Antes de se tornar recluso e enviar cartas-bomba para executivos de empresas de alta tecnologia e professores universitários, foi considerado um dos matemáticos mais promissores dos EUA nos anos 60. Tinha formação em Harvard, doutorado em Michigan e chegou a lecionar em Berkeley. Com a popularidade do terrorista e do termo, poucos críticos ao processo da tecnologia escapam deste adjetivo.

Bill Joy, apesar de ter ajudado diretamente no desenvolvimento da linguagem Java e ser co-fundador da Sun Microsystems, temeu ser chamado de ludista pelas preocupações sobre o futuro escritas no seu artigo. Além de fomentar o desenvolvimento tecnológico, o cientista não criticou diretamente a tecnologia, mas o porquê e como ela está sendo desenvolvida e aplicada na sociedade. Seu discurso segue a mesma linha dos pensamentos de Jacques Barcia e Leonardo Lima, entrevistados pela reportagem, que alimentam um ambiente tecnológico criativo com iniciativas no Recife.

“As empresas tentam vender a automação como uma boa. E é positivo, mas o problema é o capitalismo, que não permite as pessoas usufruírem dos bens automatizados. Ninguém deve trabalhar quebrando pedra ou varrendo rua, pois robôs podem e devem fazer isso. Vai desempregar a galera? Vai, mas por isso temos que trabalhar a tecnologia com o avanço social. Vamos chegar ao ponto de 50% de desemprego, pois o empresário está apaixonado pela tecnologia e vai acelerá-la nesse ponto. Eles vão fazer e vão dizer que é a melhor coisa do mundo. Se o Jeff Bezos puder, por exemplo, botar robôs para trabalhar para ele, você acha que ele não vai? Claro que vai, e sem a menor pena. Por isso temos que entender a tecnologia como algo que deve andar de mãos dadas com as pessoas e com a sociedade”, argumenta Leonardo Lima, coordenador do LOUCo.

Para Jacques Barcia, a narrativa de automação tem dois lados, e ambos utilizam o mesmo argumento. Ele explica que uma delas é a utópica, que segue o primeiro sonho da robótica descrito por Bill Joy no artigo da Wired, no qual as máquinas vão fazer com que o trabalho humano não seja mais necessário em um futuro de abundância, no qual e a riqueza será compartilhada. As pessoas irão apenas usufruir desses bens. A visão distópica usa o mesmo argumento, só que coloca o trabalho como obsoleto no sentido de ninguém ter emprego. Para o futurista, o futuro vai ser uma mistura dos dois. Essa força de trabalho pode não ser recondicionada, mas certas produções vão ser condicionadas à gratuidade ou com tendência à a zero. 

Acho que seria mais interessante pensar, por exemplo, sobre quando seres humanos e máquinas estiverem trabalhando juntos. Que tipos de habilidades os humanos precisam para ver a máquina não como ferramenta, mas como colega? E que códigos precisamos desenvolver para elas lidarem com nossas emoções? Ou como desenvolvemos um sistema social menos vulnerável a rupturas dramáticas, para que pessoas não dependam do seu trabalho para viver, como é hoje. Então, podemos pensar em formas para que momentos de ócio sejam mais comuns, fazendo com que elas não dependam do seu trabalho. Não gosto da ideia de renda básica universal por ela ser uma ferramenta de manutenção de status quo, no qual o estado recolhe o dinheiro e distribui para pessoas consumirem de organizações. É uma ferramenta para manter o sistema e sua lógica de produção de bens e serviços, venda e consumo. Tem um conceito que eu acho mais legal: o de recursos básicos universais. Ao invés de dar dinheiro, dar recursos como água, saúde, energia e internet. Recursos para pessoas fazerem coisas e viverem, não recursos financeiros para consumirem e manterem a máquina girando”, explica Jacques.

Uma das iniciativas que buscam aliar a tecnologia à sociedade é o Laboratório de Objetos Urbanos Conectados (LOUCo), coordenado por Leonardo. Trata-se de um espaço criado pelo Porto Digital do Recife para que pessoas possam produzir inovações e soluções para a sociedade. Lá, o designer trabalha o conceito de inovação de forma próxima a sua noção de progresso, que “é tudo aquilo que diminui o poder do ser humano sobre o outro”. O laboratório foi criado originalmente voltado para o software, mas a necessidade de hardware surgiu com as demandas da própria cidade, como Internet das coisas e cidades inteligentes. Dessa forma, pessoas se reúnem no espaço, debatem projetos e usam suas ferramentas com valor subsidiado.

O coordenador explica que trata-se de “um espaço para orientar pessoas na prototipação de produtos, ensiná-las a usar ferramentas, espalhar conhecimento e desmistificar essas novas tecnologias como impressora 3D. Atuamos como um agregador, no microcosmo somos uma plataforma que agrega pessoas a partir dos seus interesses para que surjam empresas e inovações. Penso que se é inovador pelo que você entrega, não pela forma. Eu sou da área de Ciências Sociais, sou muito apegado aos conceitos. Trabalhamos esses conceitos para que eles sejam algo além do processo da ferramenta. É importante pensar no problema antes, estamos num mercado muito saturado de tecnologia”.

Questionado se há saídas para conciliar a tecnologia de automação com o avanço social, o antropólogo comenta: “Tecnologias como o Uber são resultado de anos de pesquisa, que envolvem diversas pessoas, desde os programadores aos encarregados de servirem o café. É justo que somente uma empresa seja dona desse negócio? Na minha visão, isso deveria ser patrimônio da humanidade, pois foi a humanidade que gerou. Além disso, temos que ser cuidadosos ao analisar essas ferramentas. Ao mesmo tempo que o Whatsapp chega para democratizar a comunicação com o auxílio de áudios, por exemplo, ele também alimenta uma falsa inclusão digital. Dizem que 94% das pessoas com smartphone tem acesso à internet, mas não é assim, pois cartão pré pago só dá acesso às redes sociais. Então a galera recebe uma fake news mas não pode acessar a internet para conferir”.

Dessa forma, o problema da tecnologia é, na verdade, o problema de um sistema marcado por incongruências. Leonardo cita o exemplo da falta de lógica da indústria automobilística. Nela, os carros já são feitos de maneira quase autônoma e contínua, de forma a lotar cada vez mais pátios conforme as vendas caem. Para o mestre em Design, a fabricação deveria funcionar em um esquema de produção de um estoque menor, que seria reposto conforme as vendas. Esse formato não é possível, porém, porque a lógica ainda é de produção industrial para gerar demanda.

“Temos que libertar o humano do trabalho repetitivo, robotizado. Se tivéssemos feito isso, estaríamos em outro mundo agora. A visão do capitalismo de que sem salário não tem trabalho é absurda. Vemos isso nessa pandemia. Quem é músico tá fazendo música, quem é pintor está pintando. Quem está perdido é quem não teve essa instrução. Imagine esse mundo com robôs autônomos produzindo os bens, de forma que isso permita às pessoas trabalharem em rede para resolver problemas que a humanidade criou, como limpeza oceânica. Ninguém vai querer parar parar de trabalhar. Gostamos de resolver padrões e resoluções de problemas, a gente se satisfaz com isso”, afirma.

Assim como Jacques, o antropólogo enxerga um futuro com dois cenários, um utópico e o outro trágico. No primeiro, algo acontece e a renda dos 1% mais ricos é dividida e terminamos com a tecnologia sendo usada para fins de isonomia, trazendo melhores condições de saúde, bem estar e convivência para toda a sociedade. “O outro cenário seria o da exacerbação da desigualdade, no qual a riqueza continua se concentrando e surgem novos mito do Pelé, afirmando que todos podem ascender socialmente, seguindo o mito do american dream, traduzido atualmente no ‘startupeiro’. Acho que deveríamos nos preocupar em startups para trazer impactos reais, que não vão ficar milionárias, mas que podem oferecer melhores condições para os trabalhadores. Ao invés de unicórnios, essas startups deveriam ser baratas, diferentes dessas velhas corporações… É isso ou a sociedade vai ser uma classe ilhada, como nesses condomínios de luxo, e o resto passando necessidade. Acho que já estamos assim. Ou isso vai se exacerbar ou quebramos esse padrão de apropriação de conhecimento científico para o privado. Isso deveria ser da humanidade”, finaliza o antropólogo.

Bruno Moreschi, artista visual entrevistado para a investigação do impacto da IA na arte, afirma que deveríamos usar a linguagem artística para discutir as influências dessas tecnologias na nossa sociedade e na nossa vida. De fato, é papel da arte servir como lente pela qual a vida e nossa realidade é representada de forma mais sensível, oferecendo novas visões sobre nossos problemas e soluções, sobre as fraquezas e forças do humano. 

Em tempo, podemos lembrar que uma das primeiras obras cinematográficas a traduzir o sentimento de crítica a esse sistema capitalista foi longa Tempos modernos (1936), de Charles Chaplin, que expõe a desumanização durante a primeira Revolução Industrial. Até a contemporaneidade, imagens do seu personagem nocauteado e preso entre as engrenagens de um sistema industrial bruto ecoam não só na sétima arte, mas também na internet e redes sociais. Porém, um de seus discursos mais tocantes com relação às transformações da humanidade foi durante O grande ditador (1940), no qual o cineasta quebra a quarta parede e faz um discurso que traduz o sentimento de uma geração incerta sobre o futuro:

Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover as necessidades de todos. O nosso modo de vida pode ser livre e belo, mas nos perdemos. A ganância envenenou os homens. Criamos a época da velocidade, mas nos enclausuramos nela. A máquina que produz abundância tem-nos deixado em penúria. Nosso conhecimento nos deixou cínicos, nossa inteligência nos fez ásperos e cruéis. Pensamos demais e sentimos de menos. Precisamos de humanidade mais que de máquinas. Mais que esperteza, precisamos de gentileza. Sem essas virtudes, a vida será violenta e tudo estará perdido. O rádio e o avião nos aproximaram, e a natureza dessas invenções clama para a bondade do homem. (…) Não vos entregueis a estes humanos não naturais, estes homens-máquina, com mentalidades-máquina e corações-máquina. Vocês não são máquinas, vocês não são rebanho, vocês são homens. O povo tem o poder, o poder de criar máquinas e o poder de criar felicidade, o poder de tornar a vida livre e bela

Charles Chaplin

Ator e diretor, em O grande ditador (1940)