Corpo & Mídia

Essas são algumas das matérias publicadas ao longo dos últimos anos sobre mulheres que perderam – ou quase – suas vidas em busca de um padrão inalcançável. Mulheres jovens que, ao se submeterem a automedicação e procedimentos estéticos, tiveram a pior das consequências.
A busca pelo corpo perfeito é uma pauta recorrente, não surpreendentemente, uma vez que o Brasil está no top mundial de cirurgias plásticas no país, ultrapassando Estados Unidos e México. Esses dados são da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS) e Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP). Uma das cirurgias mais procuradas é a rinoplastia, principalmente em pacientes com 18 anos ou menos.

A busca pela mudança e pelo “corpo perfeito” vem da herança do sistema industrial e capitalista, fortemente presente no início do século XX em todo o mundo, até os dias atuais. Seja no cinema, nas revistas, nas novelas ou nas propagandas de marcas, a representação do belo quase sempre vem de maneira esperada, com características europeias. E é graças à influência desses meios, que milhões de pessoas passam uma vida procurando se encaixar em algo inexistente e mutável. “A mídia reforça padrões. Ela usa um fenômeno como o da beleza eurocentrada, por exemplo, socialmente já tratado, e ela dá força a isso”, explica Soraya Barreto, Mestre em direitos humanos na UFPE.
“A sociedade de consumo, a revolução industrial e as práticas capitalistas e neoliberais vão fermentar diversas indústrias como a da beleza, tudo é criado ao redor disso”, reforça Soraya. De acordo com Naomi Wolf, em “O Mito da Beleza”, esse mercado surgiu, principalmente, como uma forma de tentar impedir que a figura feminina progredisse. “À medida que as mulheres iam exigindo acesso ao poder, essa estrutura recorreu ao Mito da Beleza para prejudicar de modo substancial o progresso das mulheres,” garante.
E quem lucra com isso?
Nesse cenário, duas indústrias bem sucedidas com essa estratégia foram a cinematográfica e a da moda, que trouxeram ao longo das décadas novos conceitos e temáticas. No meio fashion, por exemplo, surgiram durante as décadas de 1860 e 1870 as revistas femininas, aperfeiçoando a produção em massa de imagens de beleza dirigida às mulheres. Isso resultou em grandes investimentos de capital, iniciando o que Naomi Wolf chama de “democratização da beleza”.
Muito antes disso, no final da Idade Média e início da Idade Moderna, o sistema de moda já tinha uma conotação parecida com o que se conhece hoje, inclusive, sobre a influência que a burguesia exercia na época, ditando os costumes e padrões de beleza. “Existiam figuras dessa patente que ditavam esses comportamentos como, por exemplo, a Maria Antonieta, que começou esse movimento de influência sobre a corte. Então, isso acontece muito antes da ascensão da cultura de massa, vem de algo muito anterior a isso”, ressalta o professor e doutor em Design, Dario Brito.
A Vogue, por exemplo, foi uma revista que exerceu um dos principais papéis no meio da moda e no mercado da beleza, impulsionando novas tendências. No entanto, por anos, o retrato das capas de uma das maiores publicações fashion do mundo era padronizado.
Após mais de 100 anos em circulação, a edição britânica da Vogue surgiu, em 1966, com seu primeiro passo na inclusividade, estrelando na capa uma modelo afro-americana, Donyale Luna. Ao longo dos anos, as edições dessa e de outras revistas foram se modernizando, implementando novos ideais, mostrando novos rostos, uma vez que não havia mais espaço para a “mesmice” no mundo moderno.

Nesse mesmo aspecto, a indústria do cinema não se consolidou de maneira diferente. É possível perceber isso principalmente nos anos 50, com a ascensão do conceito American Way Of Life, consolidado após a Segunda Guerra Mundial com os Estados Unidos em sua plena potencialidade. Nessa época, tanto o padrão de beleza quanto o de vida foram implementados em todos os cenários possíveis, inclusive na mídia, na qual a força do país estaria representada.

Durante esse processo, a figura feminina foi uma das mais impactadas, como o surgimento da femme fatale, dando holofote às grandes estrelas como Marilyn Monroe, com seu corpo “violão”, desejado pelas mulheres e cortejado pelos homens. Atualmente, essas duas indústrias – cinematográfica e da moda – seguem se renovando em diversos aspectos, sem deixar de influenciar o público com seus novos movimentos.
Essa herança do culto ao corpo mais curvilíneo, por exemplo, veio de um poder de dominação e de um grupo social da época, que determinou questões estéticas e corpóreas à sua imagem e semelhança, como os europeus, determinando um padrão de beleza diretamente ligado aos traços dessa classe. “Na época da Marilyn Monroe, mulheres que vestiam 40 ou 42 eram o padrão de beleza, porque, nessa época, os mais pobres eram magros, e os mais ricos tinham corpos mais rechonchudos. A magreza começa a virar o “ideal”, quando a sociedade pós revolução industrial percebe que quem pode escolher o quê comer, tem o corpo esbelto, mudando esse padrão”, analisa Soraya Barreto.
A partir disso, a indústria cinematográfica passou a utilizar desse fenômeno como um catalisador para o sucesso do cinema norte-americano.
“O sistema de estrelas de Hollywood sempre apelou para elementos como beleza física e sensualidade. Porque, de certa forma, essa erotização cativava e seduzia o público. Quando os estúdios perceberam essa potência conquistada através da imagem, isso foi usado à exaustão tanto pelo cinema americano quanto por outras cinematografias”, afirma o cineasta e professor, Alexandre Figueirôa.
No vídeo abaixo, você pode entender mais sobre essas duas vertentes – cinema e indústria da moda – e como elas impactaram na maneira que a sociedade projeta o padrão de beleza até nos dias de hoje.

Idealização do padrão
de beleza: quando começa?
É difícil saber exatamente quando nós mulheres passamos a nos cobrar tanto em relação à beleza. Somos ensinadas a sermos delicadas, a nos depilarmos frequentemente, a arrumar o cabelo, a nos maquiar, a agradar a figura masculina. Quem nunca ouviu a frase “senta que nem moça” atire a primeira pedra. São esses pequenos costumes, implantados desde cedo, construindo a mulher do século, que além de se desdobrar no seu ambiente de trabalho, e até no doméstico, ainda precisa arranjar tempo para cuidar de si de uma forma nem tão saudável. Como na realização de procedimentos estéticos invasivos, citados anteriormente.
A idealização da beleza pode ser considerada uma doença social, uma farsa, potencializada pela mídia e agora, mais do que nunca, pelas redes sociais. Esses espaços, além de tudo, tornam-se frustrantes quanto à representatividade. “As indústrias lucram com essa temática, como a do empoderamento feminino, por exemplo. Então, o sistema capitalista cria novas necessidades para lucrar com isso, sendo interessante para esses grupos pensarem em outros corpos, em outras belezas”, afirma Soraya Barreto.
Além disso, o que se chama de midiatização da vida parece acelerar esse processo de idealização, com o surgimento de tecnologias e de fenômenos como os influenciadores digitais, que exercem um impacto gigantesco sobre o público. Esse impacto reflete na maneira de se portar, vestir, comer, etc moldando uma geração e seus costumes.
Nesse cenário, o público não está protegido de uma série de gatilhos que podem ser disparados, principalmente quanto às questões de imagem corporal, visto que a mídia, em geral, tenta vender estereótipos por meio desses meios. A insegurança vem vinculada ao sentimento de insatisfação e insuficiência. De crianças a mulheres adultas, a insegurança atinge qualquer idade, seja por situações vivenciadas durante a infância ou adolescência, ou até no ambiente de trabalho e familiar.
“Minhas coxas e meu quadril ainda me incomodam bastante, por meu trabalho demandar sempre vários padrões de beleza, eu me cobro para estar o mais “dentro” das medidas e com o corpo mais próximo do perfeito”.
“Muitos problemas que eu tenho com meu corpo vieram da minha adolescência. Eu via as mulheres na mídia com peito grande, bunda grande, cintura fina. Enquanto isso, eu com meu cabelo cacheado, achava meu nariz grande. E até hoje eu penso que eu lido com essa insegurança da mesma forma que eu lidava quando tinha 15 anos”.
“Eu gostaria de ter mais peito, sempre fui uma pessoa muito desproporcional. Também não consigo aceitar meus pelos no corpo, então hoje em dia faço depilação a laser”.
“Acho que meu maior medo é não pertencer. Lido com a insegurança desde muito nova, não lembro de um momento que eu não tenha sido insegura”
“Comecei a dar progressiva desde muito nova porque não gostava do meu cabelo cheio e cacheado. Tive duas quedas capilares graças a isso”.
Uma cena marcante para diversas jovens que dariam tudo para se parecer com uma princesa. Essa princesa, graças à aparência “angelical”, provavelmente não sofre com comentários sobre o cabelo que possui, pelo óculo que usa, pelo aparelho odontológico, pelas espinhas e por qualquer outra característica de um ser humano normal e real.
Cena de transformação da princesa Mia em O Diário da Princesa (2001)
Mudanças?
É certo que, com o tempo, a sociedade foi construindo novos discursos. O movimento Body Positive foi um dos frutos dessa pequena mudança. Nascido nos anos 60, o lema do movimento era o “meu corpo minhas regras”, ainda utilizado na atualidade. O objetivo foi tentar mudar a forma com que a sociedade enxerga o modelo ideal do corpo, principalmente quando referente ao feminino. Seja o nariz, as cicatrizes, as deficiências ou o tom da pele, o movimento ensina a ver beleza em cada característica física, justamente por sermos seres únicos.
Além de tentar fazer as pessoas entenderem que o diferente – e fora do padrão – não é motivo para excluir o indivíduo de qualquer meio, nem o privar de elogios. O processo de autoaceitação leva tempo e requer atenção e cuidado. No link abaixo, você confere um quadro interativo com alguns perfis de redes sociais que abordam o tema e são adeptos ao movimento Body Positive.