“Os por quês comuns
no mundo infantil dão
abertura ao mundo científico do adulto
e suas descobertas”

A psicóloga Edna Teles fala sobre a necessidade de manutenção de atividades lúdicas quando adulto

 

Por Raissa Araújo Moura

Quase três décadas separam as experiências de infância dos entrevistados aqui em Diferentes Infâncias, desde as crianças que costumavam brincar preferencialmente nas ruas às que passaram mais tempo jogando on-line. Assim como as faixas etárias são diferentes, as percepções e vivências da infância também o são. Algumas outras divergências foram observadas entre seus hábitos, como, por exemplo, os programas que costumam ser assistidos, as tradições familiares e as brincadeiras compartilhadas. Porém, como essas diferenças podem afetar a vida da criança, tendo como ponto de partida a infância e as vivências comuns a cada período? Na entrevista a seguir, a psicóloga clínica com pós-graduação em arteterapia e análise bioenergética, Edna Teles, fala sobre algumas dessas questões e sobre as influências delas no nosso crescimento e na nossa vida adulta.

Como as vivências na primeira infância (do nascimento até os dois anos), na segunda infância (dos três aos cinco anos) e na terceira infância (dos seis aos dez anos) influenciam na vida da criança, psicologicamente falando?
EDNA: Toda criança, ao nascer, está inserida num contexto e numa determinada cultura. Além disso, podemos considerar também a cultura da própria família, as histórias, os segredos, os desafios, derrotas, vitórias, conquistas etc., de seus familiares maternos e paternos. Desta forma, na relação com o meio e nas vivências experimentadas, a criança é afetada em todos os seus sentidos: forma de ver o mundo, de se relacionar com ele, seus gostos, enfim, suas percepções e sentimentos. Acredita-se que o indivíduo não é totalmente determinado pelo meio. Durante seu desenvolvimento, ao ampliar conhecimentos a pessoas, torna-se capaz de fazer novas escolhas, que estarão em maior acordo com suas novas percepções e consciência. Assim, torna-se mais segura e confiante de si mesma, podendo ser observada e reconhecida como uma pessoa madura.

A pesquisa TIC Kiks Online – Brasil (2018), promovida pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, mostra que 86% das crianças e adolescentes brasileiros, entre 9 e 17 anos, vivem conectados. Outra pesquisa, agora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), com mais de 2 mil adolescentes, mostra que 25,3% dependem moderadamente ou gravemente da internet. Existe, de fato, uma dependência dos jovens? Como a iniciação à vida on-line, ainda na infância, pode agravar essa dependência?
EDNA: Sim, os jovens podem adquirir um nível de dependência. Além de ser um instrumento importante para a realização de atividades e pesquisas escolares, é também um meio de entretenimento estimulante e muito atraente, capaz de prender a atenção do jovem por horas. A utilização de recursos on-line durante a infância deve ser monitorada pelos pais e cuidadores, de modo que a criança possa ter horários para usar o aparelho e para fazer outras atividades. A interação com outras crianças e mesmo com adultos é necessária para uma infância mais saudável e feliz e para o desenvolvimento da pessoa como um todo. Uma criança que passa seu precioso tempo na internet pode tornar-se um adulto com dificuldades de socializar-se de forma plena e satisfatória.

A Sociedade Brasileira de Pediatria não recomenda que crianças com menos de dois anos sejam expostas às telas sem necessidade e que crianças entre seis e 10 anos utilizem apenas duas horas de telas por dia, para garantir um acesso mais saudável e controlado. Como os excessos no uso das tecnologias afetam o desenvolvimento cognitivo da criança/adolescente? Qual é o resultado para o futuro?
EDNA: A criança precisa de um espaço de tempo para brincar, conhecer o corpo, socializar. E, no ato do brincar, ela expressa seus sentimentos, suas angústias, identificações, conflitos, paixões, medos, raivas, admirações, protestos, enfim, sua criatividade. Sem a vivência desses afetos, a área cognitiva torna-se menos desenvolvida, porque afeto e cognição são inseparáveis, estão intrinsecamente ligados. O resultado para o futuro prevê uma pessoa mais introvertida, isolada, sem interação social e, consequentemente, com uma afetividade empobrecida.

O fato de os pais darem às crianças o celular para acalmar, em vez de dar atenção, é chamado de distração passiva. Esse tipo de resposta momentânea dos pais é vista, pelos psicólogos, como positiva? Por quê? De que forma a distração passiva traz futuros problemas para a vida adulta dos jovens?
EDNA: Quando os pais entregam o celular para acalmar a criança é indicativo de que o vínculo precisa ser melhor estreitado. Desta forma, eles inviabilizam a criança de encontrar recursos internos para se acalmar ou impossibilitam uma escuta que possa compreender e responder essa demanda. Consequentemente, quando adulto, o indivíduo tenderá a buscar no meio externo as respostas ou soluções para suas ansiedades e inquietudes internas (compulsão para o consumo, podendo ser de bebidas, compras etc.).

À medida que vamos crescendo, vamos deixando de brincar por ser algo “de criança”. Por que as pessoas devem continuar alimentando o lado lúdico delas? Quais os benefícios, a longo e curto prazo?
EDNA: Alimentar o lado lúdico pode ser entendido como dar margens à espontaneidade, expressividade, criatividade, curiosidade, graciosidade, questionamento. Os por quês comuns no mundo infantil dão abertura ao mundo científico do adulto e suas descobertas. Esses, entre outros, podem ser os benefícios da vida do adulto a longo prazo.

Além das brincadeiras incentivarem a criatividade e o respeito ao próximo, elas ainda fortalecem a coordenação motora das crianças. Qual a importância das brincadeiras para as crianças? Como elas influenciam no crescimento?
EDNA: A importância do brincar está para além do preparar-se para o mundo adulto. Compreende o corpo em desenvolvimento que se modifica a cada etapa da evolução. À medida que cresce, é possível apreender melhor o esquema corporal, bem como desenvolver habilidades corporais e sociais e compreensão de espaços e limites.

Há alguns anos, era mais forte o preconceito em relação a “brinquedo de menina” ou “de menino”. Os brinquedos chegam a “moldar” a personalidade da criança?
EDNA: O brinquedo oferecido à criança não tem o poder de mudar sua personalidade, mas amplia a capacidade de apreensão do universo.

As comemorações em família são muito recorrentes no Brasil, como Natal e Ano Novo. No ano passado, muitas famílias cancelaram as festas devido à pandemia, existindo uma ruptura na tradição. Como a não celebração, mesmo que durante um ano, pode mudar a forma como a criança vai passar a vê-la?
EDNA: A cultura não se encerra com o adiamento de um evento comemorativo. O sentimento de pertencimento vai muito além do sentido de festa. Está na família, que aliás, é esta que dá à criança o significado de festa.

Qual a importância dos costumes serem passados de geração para geração? Como isso muda o comportamento da criança?
EDNA: A importância está em não deixar morrer a cultura que dá a pessoa o senso de raiz, tradição e pertencimento. Pois a cultura é a riqueza de um povo.