Nara Normande
“FAZ PARTE, SIM, DO MEU TRABALHO ME POSICIONAR POLITICAMENTE, NÃO TEM COMO DISSOCIAR MINHA FIGURA CINEASTA DA POLÍTICA”
Como o cinema surgiu na sua vida? Você sempre soube que queria seguir essa área?
Nara Normande – Eu tinha em casa uma influência do meu pai, ele é cinéfilo e assistia muita coisa. Então já tinha acesso a alguns filmes em casa, que já me interessavam e comecei a pesquisar. Daí surgiu um interesse por animação, especificamente, e comecei a fazer coisinhas em vídeo e animação, na própria escola mesmo e aí fui caminhando naturalmente pra o cinema. Cursei Jornalismo e dentro dele comecei a puxar já pro cinema, meu TCC foi um pouco aí e, quando tinha a oportunidade, fazia trabalhos com vídeo. Foi assim que resolvi escrever meu primeiro filme, um pouco na doidera, no primeiro edital do Funcultura. Como eu não tinha currículo, fiquei assim “como é que eu vou passar?” Comecei a chamar um monte de gente, que eu conheci porque eu frequentei cinema e essa área cultural do Recife. E montei uma equipe bem experiente pro filme e consegui aprovar. E foi isso, aprovei O dia estrelado e comecei a aprender fazendo. Falo que meu primeiro filme foi muito a minha faculdade, foi um processo lento de aprendizagem mesmo.
Você já sentiu alguma dificuldade por ser mulher no meio do audiovisual?
Nara Normande – Pois é, tive. Na real, não tinham muitas mulheres fazendo na época e não tinha essa consciência que eu era uma mulher e diretora, a gente demorou a ter essa consciência das diferenças e das dificuldades. Acho que essa consciência veio quando se começou a discutir mais isso, acho que foi em 2015, talvez, que começou a se falar mais. E aí eu já tinha lançado o Sem Coração, até na filmagem, em 2013, eu não tinha tanta consciência assim do meu papel como diretora, e algumas dificuldades que eu enfrentava com isso. Uma das coisas que é mais comum é a insegurança, a gente sempre acha “será que eu sei?”, “será que eu tô fazendo certo?”, “será que é legal?”, sabe? E acho que em vários caras não tem tanto isso, vários primeiros diretores não sentem tanto isso, pelo que eu pude perceber, a insegurança das mulheres é muito maior. E também no set, por exemplo: quando eu fiz o Sem Coração, codirigi com o Tião e tive uma dificuldade ali de algumas pessoas da equipe, homens, irem buscar o Tião, principalmente, porque ele era o homem. E aí a gente conversou entre si, o Tião já tinha consciência de que isso poderia acontecer, porque ele já tinha um pouco mais de experiência e combinamos que quando algumas pessoas da equipe viessem só pra ele perguntar, ele iria esperar a minha resposta. Foi aí que comecei a falar e me impor mais.
Por falar no Sem Coração, como foi o processo de criar o incômodo presente na cena onde os meninos revezavam para ter relações sexuais com a personagem principal?
Nara Normande – É, ele fala de uma história que eu ouvi e me incomodou muito na época, é baseada em fatos reais. A Sem Coração existiu na praia em que eu nasci e vivi. A história da piscina acontecia mesmo, descobri depois – já que era muito jovem – e fui descobrindo aos poucos e isso me causou um certo incômodo e vários questionamentos sobre como é que a nossa sociedade é formada. Que tipo de machismo é esse? Ao mesmo tempo que tinha esse contrato de uma vontade de se aceitar, dela, e de tentar se incluir dentro da sociedade, ela sente incômodo, mas talvez nem sempre ela desgoste, não é uma cena de estupro que ela representa ali. Então tem todos esses contrastes que são nuances mesmo, é muito complexo e a gente tentou trabalhar no filme isso, esse sentimento que tive, que trazia já da infância. É uma cena incomoda, são crianças que estão se descobrindo e se explorando ali, já reproduzindo um sistema. A gente teve muito cuidado em fazer isso, a gente teve muita conversa com as crianças, teve psicólogo envolvido. E são coisas que acontecem realmente, a gente viajou bastante com o filme e várias pessoas falaram “tem uma Sem Coração no meu país”. E é isso, levantar essa questão: Que sociedade é essa?
Em Guaxuma, deu para notar que o filme é bem pessoal. Como foi usar a animação para colocar tanta emoção no enredo?
Nara Normande – A história em si já tem bastante emoção, por envolver uma amiga minha, uma perda. Tudo isso, com uma relação também de memória com a praia, já carrega uma emoção. Pra mim, a melhor forma de fazer isso era através dos bonecos, através dessa poesia, dessas metáforas, dessas coisas do mar, da areia, do vento e aí escolhi a areia como forma de representar, pela praia, pela coisa do tempo, além das técnicas que também que me ajudaram a criar certas emoções. Então, por exemplo, a parte que é em stop motion na praia, uma cena que é do abraço que a gente vê fisicamente ali mesmo na praia, essa cena tinha que ser assim, porque eu acho que é muito físico, a gente está lá, só que a gente está com bonecos, e a gente vê o tempo passando e achei que funcionaria junto com a emoção que eu queria trazer. Quando falo que houve um acidente, que é cena mais abstrata de sons, de areia colorida, eu trago uma memória que eu filmei mesmo com a câmera, que é com a qualidade baixa, mas que é uma memória que eu queria inserir ali e trazer essa emoção do tipo do documental. Então foi tudo muito estudado, muito pensado, é difícil saber se vai funcionar, porque eram técnicas muito distintas e até o último momento eu não sabia, é um risco também, acho que é importante sair dessa zona de conforto e tentar buscar o que a gente acha.
Existe uma marca “Nara Normande”, algo que a gente pode encontrar em todos os seus filmes?
Nara Normande – A partir do Sem Coração comecei a entender um pouco esse lugar que eu queria, tenho esse cuidado de trabalhar bem a atmosfera dos meus filmes e eu sou muito detalhista também, tematicamente eu acho que a minha infância tem sido muito forte nos meus filmes. Guaxuma foi muito autobiográfico e entender que tipo de cinema que eu quero contar e que tipo de história que eu quero contar, é o que está muito próximo a mim e ao que vivi, ao que consigo sentir, ao que tenho mais propriedade pra falar. Outra coisa é que gosto de experimentar, gosto de desafios diferentes, por mais que os filmes sejam muito diferentes entre si, acho que isso também é uma característica, mas acho que tem essa sensibilidade temática, essa sensibilidade nos pequenos detalhes de cada frame. Tem uma poesia que gosto de trazer, através das metáforas e que vejo essa construção que estou fazendo, mas eu ainda estou descobrindo que jeito é esse, é uma descoberta, não tem uma resposta certa pra essa pergunta.
Para você, qual a importância de festivais como o Animage para a criação de cinema de animação?
Nara Normande – Quando eu comecei a fazer o Animage, eu já como curadora, ia atrás dos filmes, fazia uma pesquisa imensa e isso me ajudou muito na minha formação. Dentro do cinema de animação, quando você tem acesso às linguagens, você abre um leque de possibilidades para o cinema em geral, porque são muitas formas de contar. E aí se eu te contar antes disso [do Animage], por exemplo, antes de ter qualquer festival de animação lá no Recife, em 2005/2006, fui algumas vezes pro Anima Mundi e aí fui começando a ter mais interesse por animação, comecei a encontrar também alguns animadores que já trabalhavam, e ver os filmes. Então, acho que é essencial ter lugares que você possa se alimentar, formar o público, discutir, com um festival é tudo mais acessível. Ainda bem que o Animage está resistindo.
A gente escuta muito sobre a falta de investimento no cinema brasileiro, você enxerga esse como o maior desafio da profissão?
Nara Normande – Sim, porque a gente teve um grande investimento no cinema com os outros governos, e o governo de Pernambuco também é uma grande formação, sem esse apoio não existiria essa efervescência. A questão é que isso reduziu pela metade há alguns anos, em que você conseguia 1 milhão e meio pra fazer um longa de baixo orçamento, hoje em dia você consegue 700 mil, você precisa complementar com outras coisas. Mas o que sempre aprendi foi ir atrás. Claro que não é todo mundo que vai atrás e consegue, não é isso, mas o Guaxuma eu sabia que a gente não ia conseguir filmar só com a grana do Funcultura e fui atrás de coprodução francesa, pra fazer o filme do jeito que ele merecia ser feito, com todo o cuidado, paciência. Então, é [a maior dificuldade] para quem está começando, mas depois você consegue entrar, aprende os formatos dos editais, aprende a escrever, aprende a se defender, a vender o seu peixe. Hoje, o mais difícil é você ter essa persistência e acreditar que você vai fazer, às vezes é tudo muito espaçado, você escreve uma ideia e não sabe se vai rolar, se vai virar filme e é um processo muito lento. Então a persistência que você tem que ter pra fazer um filme do jeito que ele merece ser feito é uma das coisas mais importantes e uma das coisas que mais tem que cultivar, dentro dos cineastas, porque não é fácil manter e levar muito “não”. É isso, ter persistência e não desistir, acho que junto com isso de grana, é uma das coisas mais importantes.
Vejo que você expõe bastante seus pensamentos políticos, principalmente através das redes sociais, como você enxerga, dentro da sua profissão, esse posicionamento?
Nara Normande – É essencial, é algo que o governo de esquerda vai ajudar mais, em todos os sentidos da cultura, do que o governo de direita. Mas é óbvio que a gente não pensa só na gente que está fazendo cinema, falando sobre questões sociais também, tudo que a gente faz está envolvido nisso. Acho que as pessoas que não se posicionam – e venho me posicionando há muito tempo –, que ficaram caladas em festivais super importantes, ficaram em cima do muro, como elas devem se arrepender hoje, porque afetou diretamente o bolso delas. Essas pessoas às vezes só pensam nisso: “não, vou isento, porque depois não vou conseguir tal patrocínio”, e agora você não consegue nada? Então é muito complicado essas pessoas que ficam caladas, acho que faz parte, sim, do meu trabalho me posicionar politicamente, não tem como dissociar minha figura cineasta da política, a gente respira política e não teria como, quem não fala é complicado ou vive outra realidade mesmo e não faz questão.
A pandemia foi algo que pegou todo mundo de surpresa. Como ela afetou o seu trabalho?
Nara Normande – Pois é, felizmente a gente está num processo de roteiro do longa há um tempo já, então a gente conseguiu uma certa verba pra isso com a nossa produtora e isso me deixou um pouco mais tranquila. Na verdade, quando a gente não está filmando, a gente está escrevendo, esse é o trabalho, a gente escreve muito mais do que a gente filma. Então não mudou muito, no meu estilo do que faria, estava escrevendo antes da pandemia. Só que, ao mesmo tempo, ia num café escrever ou saía; ficar em casa foi difícil, principalmente por conta das condições políticas que a gente está vivendo e, por causa de toda essa noia, a parte criativa que a gente tem que estar super bem pra criar, foi muito afetada. No começo, foi muito difícil me concentrar, não saía muita coisa. E aí também pra complementar a renda, faço as vezes animação que me chamam, como uma animação pro Museu do Rio, mas não publicidade, eu não trabalho com publicidade. Mas acho que, principalmente, afetou a criatividade, naqueles seis primeiros meses que a gente estava com muito medo. Outra coisa é que a gente ia filmar o nosso longa em setembro do ano passado, teve que adiar e só vai filmar em março do ano que vem, um tempão adiando as filmagens. Mas acho que é isso, assim, a gente teve que se adaptar, pra pandemia, pra tudo, né?
Acho que você tem acompanhado a crescente da afirmação feminina no espaço do audiovisual, principalmente nas gerações mais novas, como você vê isso?
Nara Normande – Acho que é incrível,. Acho que é unir forças e a gente está aí batalhando pra tudo que a gente não teve. Existe um estímulo quando essas mulheres se unem e fazem, essa força de “vamo botar”, “vamo fazer”, “vai ter que ter”, a gente tem que ser igual, nunca menos. São coisas que antigamente a gente nunca pensava tanto, e é super essencial, não só mulheres, mas também diversidade racial, não adianta ser só um monte de mulher branca, tem que pensar tudo, esse feminismo em conjunto, isso ajuda nas produções, a se conscientizar, isso ajuda inclusive a incentivar mulheres a fazer, conheço várias amigas que não se achavam capazes de dirigir e tinham ideias boas, que ficavam em funções mais de produção e que estão arriscando. Isso é essencial e a gente tem que continuar lutando, porque está só no começo.
Qual é a sua visão sobre o cinema pernambucano dos próximos anos?
Nara Normande – Olha, acho que o cinema tem uma galera que sempre esteve aí, que sempre ganhou os editais, o que é legal, que eles continuem fazendo, mas é legal também que tenham novas pessoas fazendo e está vindo essa geração de pessoas que tão fazendo as primeiras coisas e que tem potencial pra fazer e vai dar essa renovada. Vão ter mais mulheres e etnias diferentes, isso é muito massa, quero ver o que essas pessoas têm pra falar, de estilo e tudo. Agora, deu uma reduzida drástica no orçamento, então acho que vai ter muito cinema de guerrilha, porque ele reflete uma realidade, o cinema não é uma arte tão imediata, como o texto, como o jornalismo, a gente vai ver refletido isso que a gente está vivendo só daqui a um tempo. Isso é muito interessante, porque tem um tempo de reflexão, tem o tempo de fazer o filme e você vai adaptando o roteiro, vai amadurecendo e é um tempo de reflexão mesmo que você viveu e isso é interessante, dentro do cinema.
Nascida em Guaxuma, cidade de Alagoas, em 1986, Nara Normande veio quando criança para o Recife e se considera pernambucana de coração. Formada em jornalismo pela UNICAP, é no cinema que ela se realiza profissionalmente. No setor, conquistou até aqui mais de 100 prêmios, sendo dois como melhor diretora no Festival de Brasília, junto a alguns importantes recebidos na Quinzena dos Realizadores, no Festival de Cannes, no SXSW (South by Southwest), e aqueles realizados em Guadalajara (México), Ottawa (Canadá) e em Gramado, no Sul do Brasil. Dona de um cinema muito biográfico, assinou filmes como Guaxuma (2018), Sem Coração (2014) e Dia Estrelado (2011). Conversamos remotamente, através do Google Meet, em setembro de 2021, sobre a carreira de cineasta, seus filmes, feminismo e posicionamentos políticos.

Foto: Arquivo Pessoal