Kátia Mesel
Quando despertou em você a curiosidade para o cinema?
Kátia Mesel – O cinema surgiu na minha vida, enquanto visão, desde os sete ou oito anos, porque gostava muito de brincar com luz, com sombras, vela, sombra na parede, lanterna, fazendo sombra com objetos, com galhos. Até que uma vez descobri que, jogando pedrinhas dentro de um tanque e botando uma lanterna, saíam ondinhas refletidas na parede; acho que isso é o embrião do cinema. E, enquanto filme, surgiu de ver filmes dos outros. O primeiro filme que vi foi O Mágico de Oz, acho que tinha uns seis anos, foi numa festa de aniversário de uma amiga minha e aí a grande atração foi um filme em 16mm. Mas, enquanto minha visão de escrita com luz, uma impressão com luz, acho que foi desde sempre mesmo com reflexos e sombras.
Como você entrou nessa profissão? Houve alguma dificuldade por você ser uma mulher?
Kátia Mesel – Entrei para o cinema realmente de uma forma meio desavisada. Fotografava muito, tinha até um laboratório de revelação em casa e uma câmera fantástica com lente Zeiss. Mas aí meu pai e minha mãe, em 1968, foram para Europa e me trouxeram de presente uma 8mm, uma câmera. Então ela [a câmera] caiu meio de paraquedas na minha mão e essa primeira abordagem foi muito experimental, não me relacionei muito com ninguém, porque era uma coisa que nem imaginava que tinha outras pessoas fazendo, na realidade poucas começaram com 8mm. Depois, quando passei para Super 8, fiz um workshop na Holanda e comecei também a editar, juntar os rolinhos e tudo mais, e fui vendo que tinham outras pessoas, rapazes. Mas não tive problema nesse tempo aí por ser mulher não, era até uma coisa meio engraçada, meio que a “irmãzinha” fazendo cinema. Na realidade, até hoje tenho pouco problema por ser mulher, por ser idosa estou sentindo na pele, tem muito preconceito, inclusive de mulheres, é um grande empecilho atualmente de realizar meus trabalhos é ser idosa, o que deveria ser o contrário, né? Experiência devia contar mais nesses editais de Pernambuco, é um castigo ser idosa.
Ao longo dos seus 50 anos de carreira você já deve ter passado por bastante coisa, né? O que você considera um dos principais desafios que você precisou enfrentar nessa profissão?
Kátia Mesel – O principal desafio para mim é continuar fazendo. Não porque as mídias mudam, lógico, sempre mudaram, passei de 8mm para Super 8, depois para 35 mm, para U-Matic, para Betacam, Digital, para nuvem, chip, drone e não tem problema, a mudança de tecnologia não tem o menor problema, nem de plataforma. Aprendi muito essa coisa da perfeição da imagem, do cronograma, da pesquisa, da pré-produção. O problema é a aceitação de acharem que já cheguei na condição da carreira que não preciso de ajuda nenhuma, então perco meus projetos na defesa oral. Eu vou, passo tudo na habilitação, passo no conteúdo e tudo mais, vou para defesa oral e eles arrumam um jeito de me tirar, mesmo mostrando um grande interesse do público em um assunto. Então a minha maior dificuldade é ser velha e querer continuar fazendo (risos), é como se eles dissessem assim “pare mulher, que isso é coisa para os jovens”, mas estou bem e meu espírito é jovem e acho que essas pessoas passarão, morrerão, sairão, serão trocadas, minha esperança é essa.
Você faz parte de uma das primeiras gerações do cinema pernambucano, qual característica de atitude você vê nos profissionais da sua geração?
Kátia Mesel – A característica de atitude, que nunca é uma coisa homogênea, mas os cineastas que fizeram 35mm, que começaram na película, têm um cuidado, têm toda uma forma, uma abordagem diferente de uma preparação muito mais acurada. O digital, pela própria abundância, pela plataforma não ter valor, você não precisa pagar, você está gravando tudo ali no chip, direto na nuvem, você pode errar, fazer trinta mil vezes de novo. O cineasta que se criou na película se criou dentro de uma formatação mais rígida, até por condições econômicas, e essa adequação ela permanece dentro da cabeça como método. Mesmo fazendo com a GoPro, tenho uma tendência a fazer as coisas muito mais previsíveis e preparadas, não é por um hábito da exatidão, é um hábito de já prever até a montagem. Acho que sou mais velha, a mais idosa presentemente em Pernambuco, todos os com idade acima de mim já partiram, abaixo de mim tem pouquíssimos cineastas que trabalham com película, conto numa mão talvez. Então é uma diferença, não estou dizendo que é para melhor nem para pior, estou só dizendo que existe essa diferença. Abundância também é uma qualidade legal, você pode “meter o dedo” e sair experimentando, pode partir para fazer um roteiro muito menos amarrado, porque surpresas e as coisas que vão vindo podem ser incorporadas muito mais rapidamente. Então eu acho que a grande diferença é essa, apenas diferença, não estou julgando valores.
Como você insere a “marca Kátia Mesel” nos seus trabalhos?
Kátia Mesel – A marca Kátia Mesel no trabalho, até tem gente que diz que formei uma escola, não consigo perceber isso, mas tem gente que fala “Febre do Rato tem o Recife de Dentro pra Fora” ou “Estou me guardando para quando o carnaval chegar tem um pouco de Sulanca”. Muitos comerciais e curtas se baseiam no Recife de Dentro pra Fora, começaram a enxergar o rio [Capibaribe] como um caminho de condução. Percebo aí vários que são filhotes do Recife de Dentro pra Fora, no sentido de que não existiam antes filmes que tivessem essa essa abertura para água. Então acho que a minha marca é a originalidade, procurar caminhos que não foram usados ainda, temas que nunca foram levantados e a minha simplicidade técnica também. Não sou de grandes arroubos técnicos. Mas na hora de Sulanca, de querer uma imagem de cima e não tinha edifícios lá em Santa Cruz do Capibaribe, não tinha como alugar uma grua e não era bastante, queria muito mais alto e consegui uma escada da Celpe, que vai a 30 metros, ou seja, tenho também uma visão da tecnologia e procuro me adaptar e improvisar. Acho que a minha marca é essa, uma simplicidade e acho que também a abordagem em curtas, filmes ou entrevista sei me irmanar muito com as [pessoas] que estão dando depoimento ou sendo entrevistadas, geralmente sou eu que entrevisto nos meus filmes, embora não apareça hora nenhuma, faço todas as perguntas, entrevistas e interação. Isso acho que também é uma marca minha, vou para qualquer lugar do Brasil, inclusive já filmei em Goiás, já filmei em muitos lugares, Rio, São Paulo etc. e consegui me irmanar com as pessoas e ter uma abordagem muito simples, muito amiga e muito chegada, sem autoridade, sem ser de cima para baixo, acho que a marca é essa.
A pandemia pegou todos de surpresa, né? Como está sendo conduzir seu trabalho nesse período?
Kátia Mesel – No primeiro ano, que foi em 2020, fiquei muito reclusa, consegui fazer um vídeo de três minutos chamado Volta e muita reflexão, muito roteiro, muito pensamento, muita análise, muita pesquisa. 2021 já foi bem mais legal, porque teve a Lei Aldir Blanc e aí nós, da Arrecife, conseguimos fazer dois projetos, que foram a Mostra Kátia Mesel 2 – quatro dias de mostra com três curtas cada dia e cada dia uma pessoa convidada foi entrevistada, foi muito bacana – e um webinário de três lives sobre as plantas sagradas de cura, que foi maravilhoso, com pessoas muito importantes, dentro da religião afro pernambucana e também dos indígenas pankararus. Então a pandemia está sendo muita reflexão para novos roteiros e para entender um pouco mais a mudança dessas plataformas, a forma de abordar, a forma de oferecer ao público, o tipo de tela que a gente tem que se preocupar, se você mostra no cinema a tela tem uma dimensão, se você mostra no laptop, se você mostra no tablet e até mesmo no telefone; você fica vendo vídeos e obras no telefone e tem que prestar atenção a isso também, até por causa do letreiro das legendas, dos enquadramentos. Acho que deu uma acuidade nessa percepção das mídias, das telas, do tempo, ninguém aguenta ver coisa longuíssima mais, já fica agoniado, o timing diante de tanta proposta, de tanta coisa oferecida toda hora, todo minuto, cada grupo que você entra todo dia tem muita coisa para você ver. Então acho que o tempo também está sendo reconsiderado. A qualidade não vou dizer, porque o Tiktok mesmo, nossa senhora, qualidade zero, não tem nada, não tem enquadramento, mas tem o registro imediato que pode interessar a um e não interessar a outro.
Do começo da sua carreira para cá o cinema de Pernambuco cresceu e prosperou bastante, o que você acha que podemos esperar dele nos próximos anos?
Kátia Mesel – O que acho que o cinema pernambucano pode esperar para o futuro é muito sucesso. O cinema pernambucano é consideradíssimo nacionalmente e está cavando um caminho internacional. Está muito bom e acho que, com os anos, as pessoas vão ficar mais preparadas, porque tem vários cursos, academicamente, vai ter muito mais preparo, embora não seja suficiente, ao meu ver, você tem que ter a prática também, saber lidar com gente, saber lidar com a equipe. O cinema pernambucano tem essa heterogeneidade fantástica, todas as categorias são contempladas; animação está muito bem aqui, como os longas, como os curtas, com os webinários e tudo. Então acho que está muito bom o cinema pernambucano e só tende a melhorar. E isso vi se desenvolver, vi o interesse pelo cinema pernambucano a nível nacional, porque frequentei e frequento muitos festivais, vi o interesse assim “eita, hoje tem filme pernambucano, bora”. Acho que os curtas abriram o caminho, foi a grande alavanca do cinema pernambucano em nível nacional e aí começaram a fazer; o Baile Perfumado veio, estourou e abriu a continuidade. Tenho muita honra de não ter nunca saído daqui, porque teve uma fase que os cineastas foram embora, arribaram para São Paulo e Rio [de Janeiro] e tem uns que nem voltaram, assinam como cineastas pernambucanos, mas eles não são, né? Mas acho que o cinema pernambucano vai brilhar por muitos anos, se Deus quiser.
Kátia Mesel é pernambucana do Recife, formada em Arquitetura e Artes Gráficas pela UFPE. Com mais de 50 anos de carreira como realizadora, coleciona uma filmografia de mais de 300 filmes, entre longas e curtas, e mais de 25 prêmios nacionais e internacionais. Kátia se insere na primeira geração de mulheres no audiovisual do Estado, tendo começado sua carreira de cineasta em 1972, com o filme El Barato. Entre suas obras de maior projeção, estão Oh de Casa e Recife de Dentro para Fora. É proprietária da produtora Arrecife, fundada em 1980, que soma centenas de trabalhos audiovisuais produzidos para TV, cinema e outras mídias, como Parto Sim! e Sete Luas de Sangue. Em novembro de 2021, conversamos através do aplicativo Whatsapp, sobre como ela observa o passado e o futuro do cinema de Pernambuco, o desafio de ser uma mulher de 73 anos em sua profissão e a produção de audiovisual durante a pandemia.

Foto: Rafael Bandeira