Equidade
Em 2019 foram produzidos 166 filmes no país, entre eles, apenas 27 filmes foram dirigidos por mulheres, segundo dados do Observatório Brasileiro de Cinema e Audiovisual. O número é baixo, representa 16% dos filmes, mas é um dos maiores já atingidos na história do cinema nacional. A jornalista cultural e crítica de cinema Luciana Veras aponta que o cinema ainda é uma arte masculina e que o ponto de virada de chave é algo gradual, que vem acontecendo. “Se você pegar os últimos cinco anos dos filmes, dos longas pernambucanos, você vai ver que a maioria dos projetos é encabeçado por homens”, explicou.
A figurinista Andrea Monteiro diz perceber que, apesar de estar diretamente ligada à narrativa dos personagens, a fotografia na hierarquia do set é mais importante, é onde se investe mais. Além disso, sente que a equipe de figurino passa por muitas situações desconfortáveis. “A equipe é formada de mulheres, então os caras ficam muito em cima, existe esse assédio”, contou. Andrea também comentou sobre esse desconforto ter faces diferentes, desde comentários e olhares até a diferença de salários. “A gente ainda ganha menos com relação aos homens, é como se nós tivéssemos que ser sustentadas por um homem, o mercado de trabalho não enxerga que a gente é chefe de família”, explicou.
Assim como Andrea, a editora e montadora Natara Ney observa que, na sua área, precisa sempre provar que sabe o que está fazendo e impor o seu espaço. “Todo dia tem uma prova, diariamente se sofre, se não sou eu, uma irmã sofre, principalmente se for um corpo negro. Se tiver uma produtora negra no set, as pessoas vão pedir para ela trazer um café, antes de saber o que ela está fazendo ali”, afirmou.
Se engana quem pensa que o machismo do audiovisual se resume aos acontecimentos dentro do set. A jornalista cultural, Luciana Veras aponta que isso também se dá na sua área. “Em proporções distintas, isso também acontece na crítica; hoje está mais diversa, mas sempre foi muito masculina e nessa ideia do patriarcado”, comentou. Luciana também cita o coletivo Elviras, movimento que mulheres que criticam o cinema e passaram a debater e cavar seus espaços dentro do mercado.“A gente quer falar de diminuir a desigualdade e promover a equidade de gênero até numa paridade, a gente precisa, sim, pleitear mais espaço”, complementou.
A cineasta Dea Ferraz concorda com a posição da figurinista Andrea Monteiro, quando ela diz que “a mulher tem que mostrar muito serviço, tem que provar que a gente é muito competente para chegar ali perto deles”. Para Dea, a sociedade entende que a mulher deveria estar em casa com os filhos e que é preciso batalhar muito para conseguir qualquer outro espaço que não seja esse. “Situações em que você está numa reunião e não é escutada ou você acaba de falar e os machos vêm e explicam tudo que você acabou de dizer de outro jeito, de ter que pedir para o fotógrafo fazer um plano que você está dirigindo e o fotógrafo fazer o dele. São situações que acho que homens não passam”, lamenta.
Dea também relembra de quando três realizadoras se juntaram para uma sessão no cinema da Fundação Joaquim Nabuco e deram o nome da mostra de Cinema de Mulher, fato que causou rebuliço no Recife, questionamentos sobre o que é o cinema de mulher, já que cinema é algo universal. “Mas universal para quem? O que é esse universal? Que sujeito universal é esse? É o sujeito homem, branco, hétero, normativo. O cinema é feito por esses caras, então a gente não pode dizer que esse cinema é universal”, declarou.
Uma prova da dificuldade em garantir o espaço feminino e a dificuldade de conseguir financiamento em projetos está no fato de que o primeiro longa de ficção dirigido por uma mulher em Pernambuco só aconteceu no ano de 2013, menos de 10 anos atrás, com Amor, Plástico e Barulho, de Renata Pinheiro.
A cineasta Tuca Siqueira se viu, por quatro anos, num relacionamento que a diminuía. Ela conta que trabalhava e morava junto com um diretor com quem não tinha uma relação saudável e que acabou atrasando seus próprios processos de evolução, para se tornar produtora dele. “Dos 30 aos 35 anos eu virei um trator, porque, como a gente trabalhava muito junto, existia um esforço meu de tentar desvincular o meu nome ao nome desse diretor e fortalecer o meu espaço, que eu tinha aberto antes de namorar com ele”, contou.
FORÇA DO COLETIVO
Tuca também fala sobre a importância dos movimentos sociais. “A gente não tinha essa voz, essa voz é muito coletiva, né? Em um ambiente machista, que é ocupado em sua maioria por homens. Sozinha a gente não é ninguém,a gente juntas é mais forte para reagir e para conquistar”, afirmou.
No Estado, movimentos como o Mulheres no Audiovisual PE têm a tarefa essencial de se articular para que histórias de abuso não se repitam, além de lutar para cavar espaços para projetos de mulheres no mercado audiovisual local. “Acho que, mantendo essa articulação, fazendo esse levante, fazendo essa rede, algo que seja contínuo, constante e coletivo, que não seja pontual, ajuda a garantir esse espaço”, indicou Luciana Veras. Uma das integrantes do coletivo, a produtora Roberta Garcia argumenta que a ideia do MAPE é a de unir as mulheres e de praticar a sororidade.
Há alguns anos, a atriz Dandara de Morais passou por uma situação contra a qual as mulheres precisam muito se unir. O diretor de um filme no qual atuava queria que ela fizesse uma cena de nudez enquanto o ator ao seu lado não precisaria fazer o mesmo. “Sofri um assédio no set de filmagem, publiquei sobre isso no Facebook e aí minha vida acabou, todo mundo passou a desconfiar de mim, dizer que sou difícil, rolar um boicote mesmo, sabe?”, afirmou. Desde então Dandara se sente desamparada e vê suas oportunidades profissionais reduzidas. “As pessoas começaram a acreditar no que aquele cara estava falando de mim e, querendo ou não, a mulher quando fala, quando essa mulher preta não é submissa, é assim [estala os dedos] para eles tirarem você do jogo”, defendeu.
Além da falta de oportunidades, Dandara diz que sofre com a falta de amparo e apoio, já que não vê ninguém ao seu lado. “Sororidade para mim é coisa de mulher branca, me decepcionei porque, no momento que precisei, me deixaram na mão, né? Deram para trás justamente porque se fossem falar verdades, iam também sofrer algum tipo de retaliação, né?” Dandara também conta que as dificuldades que se seguiram depois do episódio fazem com ela pense em desistir do audiovisual todos os dias.
A produtora, sócia da Rec Produtores, Nara Aragão contou que faz um esforço para sempre colocar mulheres nos projetos que chegam em suas mãos, mas nem sempre encontra profissionais capacitadas. “É extremamente importante que tenha uma mulher acompanhando o processo criativo, mas às vezes a gente nem encontra mulheres preparadas para assumir determinada função, digo preparadas no sentido de ter uma formação, uma experiência, uma preparação técnica”, exemplificou. Por isso, explica ela, é preciso dar oportunidades para que as mulheres estejam cada vez mais preparadas para assumir esses papéis. Essa também é a opinião da editora e montadora Natara Ney. “A gente precisa investir em formação, em formar equipes, no Brasil, já podia ter escolas de cinema técnicas e de cursos como tem em Cuba, sabe?”, observou.
A INDÚSTRIA
A indústria do audiovisual movimenta milhões de reais todos os anos no Brasil e mesmo assim está sofrendo com a falta de investimento. O dinheiro destinado a editais de audiovisual nacional advém do imposto de importação de filmes estrangeiros e não disputa orçamento com saúde ou educação, por exemplo. Além disso, falta espaço para a disseminação desses filmes, como explica a cineasta Tuca Siqueira: “O Amores de Chumbo, mês que vem vai passar na Globo, dentro de uma janela de cinema pernambucano. Massa, muito massa, só que ele é exibido depois do Supercine. Então existe uma audiência, mas difícil, entendeu?”.
“É um pouco do que tem no texto da Manifesta, escrita lá em Brasília em 2019: “Nada será feito sobre nós, sem nós”. Foram muitas que construíram para que a gente chegasse aqui, desculpa a expressão, muita mulher se fodeu, muita mulher foi assediada, muita mulher foi estuprada, para hoje você poder ter essa discussão”, critica Luciana Veras.
Considerando todas as mulheres citadas nesta matéria e tantas outras pernambucanas que estão desbravando o mercado do audiovisual, somam-se dezenas de prêmios nacionais e internacionais. Assim, fica claro o potencial dos filmes produzidos por essas cineastas, resta o questionamento do porquê de essas produções não chegarem até as salas de Cinema. O trem da equidade está bem atrasado, mas seguimos esperando ele chegar na estação.
