Renata Pinheiro
Como foi o começo da sua carreira? O cinema sempre foi uma vontade na sua vida?
Renata Pinheiro – O cinema surgiu através das artes plásticas, porque eu era estudante de artes visuais na UFPE e fui contemplada com uma bolsa para uma universidade da Inglaterra, período em que comecei a fazer videoarte, era segunda metade dos anos 1990. Comecei a fazer videoarte e fazia parte das minhas exposições, das instalações etc., até tinha um amigo muito próximo na época, artista plástico, ele dizia que o que eu fazia de videoarte parecia mais com o cinema, porque tinha uma narrativa por trás, mais do que uma coisa mais abstrata, que é a arte contemporânea. A cidade era um contexto diferente naquele momento, convivia muito com cineastas, meu irmão foi produtor do Baile Perfumado, aluguei o meu ateliê para efeitos especiais que fizeram pro Baile Perfumado, então era já muito próxima ali e naturalmente fui migrando para direção de arte, não sabia como era muito bem direção de arte, não tinha essa experiência profissional. Mas acho que eu entrei num mundo mais profissional do cinema, no Texas Hotel, de Cláudio Assis, que tinha equipe de Walter Carvalho, um renomado fotógrafo e tal e um equipamento gigante, fui entender melhor o que era a hierarquia do cinema e como era que funcionava tudo ali dentro. Mas a minha criação mesmo, a minha criação quanto às minhas obras cinematográficas, elas vêm muito desse referencial que tenho de artes visuais mesmo, foi assim que eu entrei. E também graças a uma retomada do cinema brasileiro, naquele período ali, que o Baile Perfumado simboliza muito essa retomada do cinema brasileiro, que naquela época tinha sido extinto, por políticas públicas, eu estava nesse lugar que estava acontecendo, que estava começando a acontecer. Mas no cinema mesmo, [o primeiro] que eu filmei foi o Superbarroco, em 2008, aí entrou em Cannes em 2009, o primeiro curta, então foi bem legal pra mim, foi um bom começo.
Nesse começo de carreira você sentiu alguma barreira ou limitador por ser mulher?
Renata Pinheiro – Convivia com o machismo diariamente nessas equipes, com brincadeirinhas depreciativas. Mas tenho uma personalidade que conseguia me impor bem fortemente ali naquele mundo, não dava muita brecha não, não me deixava abater por essas brincadeirinhas, essa de falar como se fosse assim “essa menina” ou “haha olha como é engraçado o jeito que ela trabalha” ou “olha aquilo ou aquilo outro”, é uma tentativa de tentar achar que você está ali e é menor dentro daquela estrutura, entende? Mas aí a gente vai levando, estava ali entendendo como um trabalho muito meu, me apoderei do trabalho, não estava me sentindo trabalhando para outras pessoas, sempre me apoderei muito e aí fazia daquilo parte da minha obra. Então você passa por cima, mas é um mundo bem difícil. Agora eu acho que melhora um pouco, acho que as mulheres estão ocupando cargos que normalmente não eram muito ocupados pelas mulheres em equipe; então, naquela época era bem mais difícil.
Diante dos seus quase 15 anos de carreira, o que você considera a maior dificuldade da profissão?
Renata Pinheiro – Olha, faço cinema autoral e é considerado assim: existem dois mundos de cinema no Brasil, um mundo que é do cinema autoral e um mundo que é do cinema comercial. E as pessoas não veem as obras um do outro, falo por mim mesmo, tem muito filme que fez sucesso no Brasil de bilheteria, que não conheço. Mas o que é que acontece? A gente cai agora num momento que a Ancine está sendo desmontada e, como faço cinema independente e tenho uma produtora, que é exatamente para poder fazer o cinema que acredito, a gente agora cai numa realidade muito dura, porque de onde é que vem o dinheiro agora? Dos streamings e dessas companhias muito grandes que não sentem tanta confiança em dar verbas para pequenas produtoras e, de alguma forma, não tão preparadas para apoiar um cinema mais autoral, uma vez que eles realmente visam audiência, público, quantidade de público. Particularmente, estou sendo muito requisitada, estão me abrindo muitas portas depois do Carro Rei, e também do conjunto de obras que já tenho. Neste momento estou recebendo muitos convites para dirigir séries, estou aqui no Rio [de Janeiro] dirigindo uma série, então me sinto num momento de privilégio, porque está rolando trabalho para mim, mas não é exatamente aquela obra autoral por enquanto, sabe? A maior dificuldade é conseguir convencer os financiadores para você produzir sua obra.
Não tem como falar com você hoje sem falar de Carro Rei, né? (risos) Como foi o processo de criação desse filme? Você imaginava a repercussão que teve?
Renata Pinheiro – Não sabia como é que ia ser, né? Carro Rei nasce de uma ideia bem ousada, que é dos carros dominarem as cidades e falarem, ousada no sentido de você fazer live action disso com a pouca grana do cinema autoral, porque isso não é difícil pra Hollywood, na verdade, mas em se tratando de cinema autoral, é ousadia. Então, o primeiro passo é: como conseguir recurso para esse filme. Já foi uma longa estrada, um filme que nasce em 2014 (acredito) que vai se realizar em 2019, a filmagem. Carro Rei é um filme que trata de questões bem profundas, amplas e universais, mas tem um gosto bem nordestino e um humor bem nordestino. Não sabia muito bem como ia ser a repercussão, mas fico pensando que as pessoas estão um pouco cansadas da fórmula feita, pronta, e por isso não entendo muito o mercado, porque ao mesmo tempo que eles querem coisas decodificadas, iguais. O Carro Rei está fora da curva, não só no Brasil, como no mundo e todos os textos falam disso, um filme muito original e dá uma vontade nas pessoas de escreverem sobre ele, a gente nem sabe contabilizar quantas críticas já saíram sobre o filme, as pessoas gostam e querem escrever sobre a obra. Está circulando em festivais internacionais, hoje mesmo eu tenho uma entrevista pra um festival importantíssimo nos Estados Unidos, vai ser distribuído nos Estados Unidos e a gente ganhou Gramado, né? E o Fantasy (Festival Internacional de Cinema Fantástico) também, brasileiro, inclusive a maior honra ter recebido o prêmio do público. Sempre fiquei um pouco frustrada com os meus filmes, porque, claro, a gente faz e quer mais, quer mais aceitação, quer mais críticas positivas, quer mais isso e aquilo outro, e eu desconfio que é uma nordestina, então não circula muito, agora tenho circulado mais, também não tenho tantos amigos, porque tem isso: dizem que quem tem muitos amigos não faz filme ruim. O Amor, Plástico e Barulho, por exemplo, é um filme que até hoje é muito visto, até hoje é convidado para mostras, a gente ganhou três prêmios e eu vou dizer uma coisa: queria mais (risos). Mas a gente vai levando, então acho que estava acostumada a ficar ali na terceira colocação da coisa e ele é fruto meio disso, de um amadurecimento meu e de um amadurecimento de quem eu sou e do lugar que eu ocupo, inclusive como mulher, como pernambucana, no mundo e no cinema brasileiro e no cinema mundial.
Você comentou sobre Amor, Plástico e Barulho e uma coisa que eu queria te perguntar sobre ele tem muito a ver com pertencimento. Foi intencional colocar Pernambuco ali ou acabou sendo uma consequência?
Renata Pinheiro – O Amor, Plástico e Barulho é um filme que nasce dessa minha paixão pela música brega, feita em Pernambuco e no Pará. Comecei a frequentar esses lugares e conversar com as artistas, teve uma conversa que eu tive com as artistas num show em Fortaleza que aí foi definitivo: “eu quero realmente fazer um filme sobre essas mulheres”. Mas o momento mais feliz para mim, emocionante, foi mostrar esse filme no cineclube da Penitenciária do Bom Pastor, que é feminina. As mulheres lá – é um lugar muito precário, sujo, foda cara – gritavam “ali, eu já fui ali”, “olha não sei o quê”, elas estavam sem ver a cidade há muito tempo, foi emocionante como elas se identificaram com o filme. E eu olhava para elas e pensava: quantas dessas mulheres aqui – tudo bem elas são fora da lei –, o quanto que elas são heroínas dessa vida foda, o quanto que admiro essas mulheres ali na plateia, assistindo aquele filme e se identificando, foi realmente emocionante. E outra coisa que eu descobri depois de fazer o filme foi que, apesar de não ser a primeira geração de cineastas pernambucanas, fui a primeira mulher a fazer um longa metragem de ficção. Isso foi bem surpreendente para mim e também, de alguma forma, coloca esse filme em algum lugar de um marco, porque ele é um filme sobre mulheres, ele é um filme feminista no momento que a gente também não estava discutindo tanto o feminismo, como sou mulher, naturalmente, era o meu lugar de fala também.
Em entrevista para a revista Continente, Matheus Nachtergaele falou que um dos defeitos de que o cinema pernambucano pode ser acusado é de um leve machismo, mas deu a entender que você tem o jogo de cintura ideal para driblar isso, como funciona na prática?
Renata Pinheiro – Olha, já estou meio cascuda, então me protejo, né? Gosto de participar de concursos públicos onde a gente saiba que tem mulheres ali julgando o seu projeto, isso é super importante. E não só como mulher, que tenha também uma representatividade de raças, de etnias, de gênero também, já há uma preocupação pública interessante em relação a isso. Então já sinto que se eu não ganhar não tem problema, porque a coisa está armada de uma maneira mais justa, independente dessa questão de ser mulher. Não é que as mulheres têm que ganhar tudo, mas é que quem está no julgamento analisando tem que ter a representatividade da mulher lá dentro, mesmo que o melhor projeto seja do homem, sei que eu fui julgada por mulheres que têm o mesmo lugar de fala meu, então eu sinto que está sendo feita alguma justiça social e artística ali dentro. E acho que [as cineastas mulheres] estão botando para quebrar, tem muita coisa boa experimental, essa coisa da coragem da gente de querer buscar o nosso caminho, tenho visto muita coisa legal, tem muita coisa pra acontecer ainda que vai quebrar os paradigmas também, muito positivo mesmo este momento.
Outro ponto crucial nesses dois últimos anos foi a pandemia, como foi trabalhar nessas condições?
Renata Pinheiro – Bem difícil, comecei a montar e tive que parar por meses, porque não dava pra ficar recebendo a montagem de longe. Conseguimos nos unir novamente com todo o cuidado, com o meu montador, e precisei ainda filmar três diárias em Caruaru [para o filme Carro Rei]. A gente fez e foi bem caro, porque a gente realmente seguiu todas as normas sanitárias possíveis, mas era bem importante para gente fechar a montagem. Essas três diárias, a gente conseguiu fazer graças à equipe tão maravilhosa, eu, Sérgio Oliveira e Roberta Garcia também, mais uma rede de apoio de profissionais incríveis, pernambucanos, com quem a gente trabalha, como Dedete Parente. Tem tanta gente que é a nossa força, está tudo lá nos créditos do filme; todo mundo que a gente ama demais e esse filme foi realmente um prazer para todo mundo. A gente conseguiu, uma equipe bem pequenininha, ficamos todos num lugar só, numa fazenda separada da cidade, foi um exercício muito legal criativo, porque numa fazenda consegui fazer diversos lugares, a casa virou hospital, o jardim dessa fazenda virou o pátio da universidade, a gente fez tanta coisa num lugar só que é incrível, quando a gente tem poucos recursos, a gente também dá conta, a gente usa toda a nossa capacidade criativa para conseguir resolver questões ali com muito pouco. Então a pandemia serviu para gente entender que é possível fazer com o que a gente tiver na mão, mas foi tudo mais complicadinho pra gente conseguir, foi muito estressante, eu até adoeci, era essa tensão de estar passando por um processo que eu desconhecia de finalização, sem estar sobre o controle presencial de tudo.
A recifense Renata Pinheiro, formada em Artes Plásticas pela UFPE, é uma das proprietárias da produtora Aroma Filmes e tem o título de primeira cineasta pernambucana a realizar um longa-metragem de ficção. Antes de atuar como diretora, sua habilidade com as artes plásticas se revelou em trabalhos como diretora de arte em filmes como Tatuagem e Febre do Rato. Renata já soma diversos prêmios, inclusive, o mais recente, de melhor filme no Festival de Gramado, com Carro Rei. Além deste, ela também dirigiu Amor, Plástico e Barulho, SuperBarroco e Açúcar. Em setembro de 2021, conversamos através do Google Meet, sobre o cinema pernambucano, suas criações, o machismo no audiovisual e os desafios de produzir um trabalho em plena pandemia.

Foto: NovoCine