Luci Alcântara
Como o cinema surgiu na sua vida?
Luci Alcântara – O cinema, como arte, surgiu porque tenho a sorte de ter nascido por último depois de cinco homens.Quando nasci o mais velho já era um rapaz, e meu pai sempre me tratou igual, minha mãe também, tinha os mesmos direitos e os mesmos deveres. Era uma casa de pessoas de direita, então nasci num mundo de livros, enciclopédias na época, mas o cinema apareceu porque o meu pai disse “leve a menina pro cinema”. Aí pronto, os primos mais velhos começaram a me levar, me lembro que o primeiro filme foi Robson Crusoé e aí começou essa história de viver no cinema, para mim sempre foi uma coisa natural. Não queria ser jornalista, como já fazia teatro, fui fazer Artes Cênicas, diferentemente da minha geração, sou a única formada em teatro, o resto é jornalista, praticamente 98%, mas curiosamente, Daniele Romani, diz que sou a cineasta mais jornalista do mundo, porque gosto muito de jornal, ainda assino, amo, mas jamais seria jornalista. Comecei indo trabalhar na indústria cinematográfica lá no Rio de Janeiro, como atriz e como assistente de figurino, meu primeiro trabalho fui atrás e o diretor de arte adorou, era de época o filme, contava a história de Euclides da Cunha.
Como foi entrar nesse ramo, teve alguma dificuldade no início por ser mulher?
Luci Alcântara – Não tive problema por ser mulher, tive problema por ser nordestina, eu sofri muito bullying. Hoje Pernambuco está na moda, mas me fudi, a minha sorte é que meu intelecto é muito superior ao dessas pessoas e conseguia arrasar com eles nesse sentido. Nesse primeiro filme, por exemplo, o diretor pediu para que eu pensasse no figurino de uma cena, então fui para casa, estudei, fui no centro comercial e comprei pedaços de tecido, desenhei os figurinos, aí cheguei no set toda animada e ele fez “O que é isso? Adorei, você vai ser minha primeira assistente”, e aí quase que me assassinam, chorava de tanto fora que levava dos outros, mangavam de mim, era horrível, tem uma que odeio até hoje, me dei bem com quem trabalha bem, com quem faz cinema para se amostrar, não. Eu estava cansada em mesa de bar de ouvir “en en, aprendeu onde? Na terrinha foi?” e eu respondia “Lá no quintal da minha mãe, ela dá aula de cinema para gente ignorante, você tá afim?” (risos). Galguei, fui assistente de figurino, depois assistente de direção de arte, diretora de produção, diretora de platô, assistente de direção, até realizadora. Mas fui muito julgada: porque não dava bola para os homens, eu era lésbica; porque não fumava maconha, eu era burguesa; porque era branca, eu era racista. Hoje estou muito debochada, desde que fiz 60 anos estou cada vez mais debochada, não levo recado para casa. Tô uma chata! E não quero nem saber, quem não gosto só trato de negócios. Mas a sororidade é agora na sua geração, na minha não tinha sororidade nenhuma, era inveja, uma época de mulheres poderosas que agiam como macho e só gostavam de macho, sofri muito sozinha, mas agora não sofro mais, não.
Qual o principal desafio da profissão pra você?
Luci Alcântara – O desafio maior da profissão, na época, era ter que trabalhar com gente que nunca estudou. E, aqui, tive muitos problemas, porque como nunca fiz muito amiguinho, nunca gostei de fazer muita amizade no trabalho, e eles [os profissionais do audiovisual] são todos assim, grudados, todos os diretores são casados com produtoras, por exemplo, eu não. Coisas de amizade, aqui é brodagem, o nome brodagem é perfeito pro Recife. Por exemplo, o Cláudio Assis, todo mundo sabe disso, queria porque queria que eu fizesse o Amarelo [Manga], porque conheço ele desde novinha, sabe? Não suporto ele e, como não quis, ele disse a todo mundo que eu era uma cretina, uma filha da puta, perdi um monte de trabalho por conta dele, não foi 1 ou 2, foram muitos. Na época do Baile Perfumado, eles queriam que eu fosse a diretora de produção e disse “não vou, porque eu odeio o diretor de fotografia que tentou me estuprar”, alguns se chatearam, mas a maioria entendeu. Eu era a melhor produtora, todo mundo queria, então decidi dirigir.
Todos falam sobre a falta de investimento na área e acho que com você não foi diferente, essa foi sua maior dificuldade para produzir O Melhor Documentário do Mundo?
Luci Alcântara – A falta de investimento é a pior coisa do mundo, mas tenho sorte de estar num Estado que já deu muito dinheiro para essa área, desde o governo de Eduardo [Campos]. O Melhor Documentário do Mundo vou dizer logo a você, o primeiro pedaço ganhei, fui a única pessoa que passou nos primeiros negócios desse Funcultura e do edital municipal, passei com dois projetos, o Geração 65, e passei no municipal com O Melhor Documentário do Mundo, isso já faz mais de 10 anos, e aí consegui começar com muita dificuldade, capengando, porque era um inferno, renderizar era um inferno, a montagem era um inferno; então você não pode trabalhar criativamente com uma porra dessa. Hoje em dia não, cada vez estou mais criativa por conta da tecnologia. Em O Melhor Documentário do Mundo comecei a ter problemas com pessoas que estavam na Fundarpe, foi negado quatro anos, e agora voltei, agora sai, já mudei ele todinho (risos), por conta da tecnologia, agora vai ficar uma coisa muito mais bacana, vai ficar maravilhoso, porque ele é atemporal, tudo que gravo é atemporal.
Nas suas obras é possível ver diferentes estilos, como a diferença entre Quarto de Empregada e Úrsula, esse último foi uma coisa bem fora da curva, como você define um estilo de trabalho nas obras?
Luci Alcântara – Chamo hoje de ensaio, já vou lhe dizendo que detesto chamar de documentário, porque os jornalistas tomaram esse nome, eu amo o que chamo de [documentário] jornalístico, aquelas coisas que os jornalistas fazem muito bem, amo, sou viciada, assisto tudo, mas aí não uso mais o nome documentário, o documentário de cinema a gente está usando agora ensaio, certo? Porque não tem verdade, não tem notícia, não é nada disso, entendeu? É o olhar. Quarto de Empregada me jogaram na mão, foi o primeiro que dirigi, me jogaram na mão porque roubaram o dinheiro que a Oxford tinha enviado e o filme não ia sair, as domésticas ficaram arrasadas, e eu disse “não, eu dirijo”. Então é um filme do ponto de vista das domésticas, as patroas odeiam, esse negócio de mostrar os dois lados não existe [no cinema], isso é coisa de jornalista, então fiz botando para lascar. Ganhei prêmios até em dinheiro com esse filme, na Bahia o Cláudio Assis estava até na plateia e disse “vai tomar no cu”, na frente de todo mundo, tu acredita? Foi em 96. Úrsula é uma poesia do livro De A a Z [As Filhas de Lilith], de Cida Pedrosa, ele fez parte de um projeto com 26 vídeos curtos, escolhi essa poesia que achei muito bonita e fiz com meus alunos, chamei minha amiga Brigitte, resolvi traduzir o poema para o inglês e musicar com meu aluno, ficou completamente diferente de tudo.
Quarto de Empregada e JMB, o famigerado parecem ter objetivos bem diferentes. O primeiro, um aspecto mais de denúncia e, o segundo, um aspecto mais de homenagem. Como você vê a “marca Luci Alcântara” em cada um deles? Inclusive, em um texto para a revista Continente você disse que Jomard Muniz de Britto te cognominou “cineasta vampira”, como você se vê nesse posto durante uma produção?
Luci Alcântara – Não tenho estilo, não sou cineasta feminista, nada nisso, sou feminista como pessoa, como mulher, mas não como cineasta. Um documentarista tem que amar o seu objeto, isso é a coisa mais importante. Se você quiser me definir, uma documentarista é definida pelo amor que sente pelo personagem e a quantidade de tempo que dedica a ele, como disse Nagisa Oshima, por isso que Jomard me chama de “Cineasta Vampira”, porque filmava até esganá-lo, esse é o meu estilo, a minha marca é essa, pensar sempre no personagem. A gente tem que olhar para o outro, e as pessoas não olham, essa é a minha marca, quero ser conhecida por isso.
Quais os processos envolvidos na participação de festivais inclusive os fora do Brasil, como o XI Festival Internacional de Documentários 2010, em Cuba?
Luci Alcântara – Isso aí mandei, mandava pra tudo, alguns fui convidada, já fui para todos, Rio [de Janeiro], São Paulo, Gramado, Fortaleza. Esse, Cuba me pediu e mandei, alguém de lá me perguntou se tinha em espanhol e disse que tinha, aí mandei.
Apesar das dificuldades, quais você considera suas maiores conquistas?
Luci Alcântara – Conquista é uma coisa que acho meio complicado, porque conquista é sobreviver (risos). Teve uma vez que uma jornalista perguntou “Luci, você não se ofende ou não tem inveja dos que você encaminhou?” e eu disse “eu não, jamais queria ser um deles”.
A afirmação feminina e até do movimento feminista tem crescendo muito no audiovisual, como você tem enxergado isso?
Luci Alcântara – Adoro, assisto tudo, não faço parte, mas adoro todas essas meninas, ajudei várias delas, inclusive, e o que puder ajudo, não faço porque já tenho na cabeça tudo que quero fazer.
Como está sendo conduzir seu trabalho em meio a uma pandemia?
Luci Alcântara – Tá sendo difícil, foi difícil. Mas uma coisa vou te dizer que foi boa, porque pensei muito sobre o roteiro desse [próximo filme] Os Gritos de Ipiranga. Então o montador, quando recebeu, disse “Luci, isso aqui está para qualquer débil mental entender, tudo explicadinho” (risos).
O que acha que o cinema pernambucano pode esperar nos próximos anos?
Luci Alcântara – Espero mais patrocínios, porque a pandemia ensinou, principalmente ao empresariado, que ele precisa do audiovisual para tudo. Espero arte. Estou mais felizinha, porque parei o que estava fazendo, justamente em março de 2020, quando ia montar um filme, estou fazendo um curta, mas provavelmente vou entrar na ilha [de edição] agora, só falta montar e fazer edição de som. Hoje em dia tenho duas facetas: a faceta artista, que vivo atrás de edital, e a faceta que não chamo mais de comercial, porque não faço mais, não dirijo mais comercial nem nada disso, faço filmes culturais, invento todo o projeto e vendo, e estou conseguindo fazer. O que não gosto em Pernambuco é dessa dicotomia em que a classe média vive num limbo, porque você ou é classe média ou é fudido, e tudo de bom é para rico.
Luci Alcântara é recifense, formada em Artes Cênicas pela UFPE e pós-graduada pela Unicap em Estudos Cinematográficos. É diretora e roteirista, apesar de já ter passeado por diversas áreas do cinema. Assinou filmes como Geração 65: aquela coisa toda, JMB, o famigerado, Quarto de Empregada, Restaurante Leite: receita de tradição e Carreiro. Nesta entrevista, concedida em setembro de 2021, de forma remota através da plataforma Google Meet, trago trechos de nossa conversa sobre as opiniões da artista de 61 anos sobre o cinema pernambucano, o início da sua carreira, os desafios que enfrentou, seu estilo e sua marca.

Foto: Ed Machado