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Paulo Trigueiro. Créditos: Débora Rosa.

No teste para a editoria de Vida Urbana, no Diario de Pernambuco, a pauteira Ana Neiva me mandou investigar uma denúncia de que uma comunidade estava sendo formada num terreno próximo ao aeroporto. Teve cuidado comigo: “Não entre, porque você pode levar um tiro”. Cheguei na entrada principal, um grande buraco, e entrei, procurando um líder que pudesse me receber. Uma pessoa, chamada pelas demais de “pastor”, conversou comigo e com o experiente fotógrafo Júlio Jacobina. Nos mostrou o local e nos apresentou vários moradores que contaram suas histórias. Diocleiton, que estudava para concursos embaixo de uma árvore, apesar de toda a miséria, me chamou à atenção. Voltei para a redação, fiz a matéria e liguei para a Infraero. Perguntei ao gerente de segurança da época se aquelas pessoas trariam algum problema para o aeroporto, e ele disse que não conseguia pensar em nada. Cerca de uma hora depois ele me liga de volta, meio desesperado, dizendo que lembrou de algo. Era o “perigo aviário”.

Passei no teste e fiquei estagiando na editoria que, em breve, passou a chamar “Local”. Em fevereiro, quando a comunidade recebeu ordem de desocupação, Neiva me enviou novamente. A comunidade estava diferente. Havia muito mais barracos que da primeira vez, Diocleiton havia acabado de sair da cadeia e o “pastor” tinha sido expulso por moradores que descobriram que ele estava vendendo terrenos por lá. Sem líder, conversei com as pessoas que estavam no momento e combinei que faria uma grande matéria contando suas histórias, tão comumente generalizadas. Sebastião, vendedor de cocadas, se empolgou com a ideia. Queria que eu fizesse um documentário contando os problemas.

Cheguei pouco depois das dez da manhã na Comunidade, entrevistei todas as pessoas com quem havia combinado, menos Sebastião. Disseram que ele estava trabalhando. Terminei, andei muito para chegar na saída e, quando já estava olhando a Avenida Recife, uma pessoa numa bicicleta assobiava, pedindo para que eu esperasse.  Era Sebastião. Parou na minha frente e ofereceu a última cocada. “Guardei para você. Pode comer, que é limpinha”, disse. Odeio cocada, mas voltei no carro do jornal comendo ela junto com o motorista, Johnatan, e segurando as lágrimas. Porra. Aquelas pessoas não tinham nada e estavam me oferecendo algo mesmo assim.

Resolvi fazer o documentário com minha namorada, Débora Rosa, que topou na hora. Um dia, antes de terminarmos todas as gravações, me liga Gabriel Trigueiro, editor geral de local, às dez horas da noite. “Vão desocupar amanhã. Quer ir? Se for tem que vir bem cedo.” Liguei imediatamente para os moradores, mas eles disseram que era um boato. Torci para que fosse, mas me preparei. Quando cheguei ao local, vi o aparato policial e gelei. Aquilo tudo contra aquelas pessoas que eu conheci? Liguei para saber como Izabel estava e combinamos que eu entraria por uma porta afastada que ela abriria para mim. Eu era a pessoa que Rodrigo de Luna ouviu falar estar presa lá dentro. Voltei para casa à noite depois de escrever uma página sobre o assunto, mas, em vez de uma sensação de dever cumprido, sentia culpa por ter casa, cama. Não fazia ideia de onde as pessoas estavam. Tinha me despedido delas antes de a desocupação acabar. Sem acompanhar a derrubada do último barraco, o de Pedro Caetano.

Quando cheguei no outro dia, vi tudo no chão, fiz uma foto com o iPhone do jornal e fiquei lá, parado, sentindo sei lá o que. Fui convencido pelo orientador do meu projeto experimental Dario Brito a descobrir motivações, consequências e o contexto da desocupação. Ele havia acompanhado todo o processo que passei e acreditava – acertadamente, como de costume – que eu poderia dar à história uma dimensão outra. Tive a ideia de dar voz às pessoas, todas elas. Contei sempre com a ajuda de Débora filmando todos os encontros, com a intenção de criar um documentário longa, mas não conseguimos filmar a juíza Joana Carolina. Consegui, ao menos, gravar o áudio. Ela tinha medo que as pessoas associassem o caso a ela e a agredissem. Eu entendi e aceitei, depois de insistir muito. O que eu não entendi, muito menos aceitei, foi o resto todo.

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