ANTES

 

jornalista, Rodrigo de Luna:

Essa desocupação foi diferente porque normalmente a gente está na redação ou no meio de uma pauta quando fica sabendo de uma reintegração de posse. Os próprios moradores ligam pedindo a presença da imprensa. Nesse caso, ficamos sabendo na noite anterior, através do grupo de whatsapp da própria polícia militar. Não podíamos divulgar, mas eles nos avisaram que haveria a desocupação no dia seguinte. Eles montariam uma estrutura na qual poderíamos acompanhar todo o processo.

Esse aviso só havia acontecido uma vez, menos de quinze dias antes. Na reintegração de posse de uma ocupação chamada Olga Benário, localizada num terreno junto à sede da Justiça Federal. Nossa atuação foi cerceada pela polícia. Tivemos que parar o carro do jornal a uns quarteirões de distância e fomos todos levados em um furgão para o local. Lá, já estava tudo praticamente “limpo”. Tinham alguns barracos  que não passavam de lonas em estacas sem móveis. Achamos muito estranho uma ocupação sem gente ocupando. Eles deram a explicação de que os barracos não tinham gente porque tinham sido construídos por pessoas que não moravam neles e só queriam vendê-los.


Quando entramos ao vivo com essas informações, a população começou a ligar para a redação e dizer que estávamos mentindo. Descobrimos, então, que a desocupação estava acontecendo em outro lugar desse terreno, que é muito grande.  Não podíamos voltar porque tínhamos vindo com o furgão da polícia. Dei um jeito. Liguei para meu motorista para nos encontrarmos e consegui fazer a matéria verdadeira, com pessoas que moravam há anos no local, em casas de alvenaria.

 

juíza federal, Joana Carolina Lins:
Eu atuei como uma ponte entre a comunidade e o executivo, que seriam as potenciais autoridades para solucionar o caso. Atuação que, na verdade, nem mesmo compete ao juiz. Realizamos duas audiências de conciliação e chamamos, além do Ministério Público, as secretarias de habitação do estado e do município, a União, a Infraero, a Aeronáutica e os moradores da comunidade. Na segunda audiência, também chamei dois representantes de uma comissão interministerial para regularização latifundiária: Márcia Kumer, da Secretaria Geral da Presidência da República, e Jorge Martins, do Ministério das Cidades. Proferi a decisão e avisei a todos. Ainda perguntei ao comandante da Polícia Federal se eu poderia estar presente no dia, porque queria garantir que não houvesse exageros por parte da polícia. Eles disseram que seria imprudente porque os ocupantes poderiam não entender a decisão e achar que eu era a culpada daquilo acontecer, se revoltando contra mim.

 

morador, Eduardo Gomes da Silva:

Eu ainda não tinha tudo que precisava na minha casa. Mas, quando soube que havia a possibilidade da desocupação acontecer, peguei o que eu tinha e voltei para a casa da minha mãe. Deitei, mas fiquei pensando que não deveria jogar meu corpo fora, que eu poderia ajudar meus amigos a se mudarem e a desocupar as casas. Foi o que eu decidi fazer.  

 

moradora, Izabel do Nascimento:

Sabíamos que um ofício ia chegar para nos avisar o dia de sair. Mas a informação que os moradores tinham era a de que a reintegração estava suspensa por tempo indeterminado.

 

moradora, Tatiane Maria da Conceição:

Uma professora que mora próxima à Comunidade e nos ajudava nos avisou da desocupação um dia antes de ela acontecer. Mas houve uma reunião na comunidade e ninguém sabia de nada, não tinha chegado nenhum mandado. Ninguém tinha sido avisado. Eu estava insegura, mas fiquei em casa. Por outro lado, comecei a arrumar minhas coisas…

 

DURANTE

 

Pedro Caetano discursa para Batalhão de Choque durante desocupação. Créditos: Paulo Trigueiro.

 

advogada, Maria José do Amaral:

Fui para a desocupação, mas o caminho estava obstado pelos agentes de trânsito. Então, fui até a Corregedoria do Tribunal Regional Federal, porque eu nunca tinha visto uma decisão embargada sendo cumprida. O corregedor passou horas no telefone, mas explicou que não poderia interferir. Comecei a receber ligações de moradores dizendo que algumas pessoas estavam sendo presas e segui para a Central de Flagrantes, para evitar que os moradores fossem levados ao Cotel por crimes não cometidos. Essa transferência para a unidade prisional já era cogitada abertamente pelos policiais. As duas pessoas detidas estavam em locais diferentes, mas as duas delegadas agiram de forma semelhante em relação a eles: viram que havia defesa, restituíram os documentos dos moradores e os liberaram.

Essa forma de resolução de conflito que foi colocada para a Comunidade não é a mesma disponível para quem tem dinheiro. O tratamento para quem tem posses é cordial e em acerto com a constituição e as leis comuns. Sem violência, agressão. Há notícias no Diario de Pernambuco que falam sobre aceleração de parto, um crime de genocídio. Também não houve a presença do Ministério Público para fiscalizar a ação policial e garantir os direitos humanos, obrigatória pelo Código Civil e por uma lei estadual criada no segundo governo de Miguel Arraes.

Tenho três oficialas de justiça em certidão – que só surgiu depois que eu exigi legalmente – dizendo que nada fizeram ou determinaram, porque a juíza Joana Carolina falava diretamente com a Polícia de Choque por telefone.”

 

jornalista, Rodrigo de Luna:

Quando nossa equipe chegou, a Avenida Recife estava completamente interditada. Várias viaturas de exército, Polícia Militar e Polícia Rodoviária Federal. Realmente tinha uma estrutura muito grande montada. Fomos para o local indicado pelo assessor de comunicação da PM e não demorou meia hora para começarem os confrontos. Era a polícia tentando entrar e os moradores jogando pedra e lixo por cima do muro. Marcou muito o fato de que nem eu, nem os colegas da imprensa, tivemos contato com os moradores. O contato foi com as instituições: PM e PF.

Tivemos dificuldade de ter acesso aos moradores porque a Comunidade estava fechada pelo muro. Mas quando algumas pessoas começaram a sair, retirando seus pertences, nós fomos abordá-los. E, para minha surpresa, havia uma regra estabelecida de que a gente não poderia fazer isso. O motivo alegado pela polícia era a de que nós iríamos incitar a revolta neles. Eu cheguei a ser ameaçado de sair de lá preso porque estava conversando com as pessoas. Argumentei que é o papel da imprensa ouvir os dois lados e que eu não estava fazendo uma reportagem institucional solicitada pela polícia, mas ouvi a mesma ordem outra vez. Depois de muita confusão, confronto e conflito, finalmente os moradores cederam. Muita coisa acontecia por trás do muro e a gente não conseguia ver. Tínhamos notícia de que um colega da imprensa entrou e não podia sair. Tentamos nos aproximar mas não conseguimos por causa das pedras jogadas e das balas de borracha. Mas o que impedia mesmo era a ordem dos policiais.

Eu e meu cinegrafista somos meio ousados. Quando a situação se acalmou, nós conseguimos entrar por um outro caminho. Conseguimos mostrar as casas e o que tinha sobrado delas. Conversamos com as pessoas para que elas contassem o que estava acontecendo. Depois de mais de uma hora é que a entrada da polícia foi liberada e eu recebi uma nova retaliação porque já estava dentro e só poderia ter entrado junto com a PM. Muita gente resistiu e saiu ferida.

17852929773_6b02167270_kTiveram personagens marcantes. Crianças juntando os brinquedinhos, sem provavelmente entender o que estava acontecendo. Idosos perdendo tudo o que juntaram nos seus barracos. E vão para onde? A gente entende as razões legais, mas ninguém está ali porque quer. Muitas vezes na lama e em condições de sujeira. A gente se sensibiliza. Eu lamento não termos condições de ter um acompanhamento do que aconteceu com aquelas pessoas e saber para onde foram.

Vi muita gente marginalizada, sendo tratada como bandido porque tem determinada aparência. Sem camisa, por exemplo. A gente ouviu dos próprios moradores que tinha uma pessoa lá fugida da polícia, mas todos, não só ele, são tratados assim. São tratados como um bolo só, não como indivíduos. Não olham para as suas histórias.

Foram sete horas de cobertura. Mal paramos para tomar café da manhã ou almoçar, porque entramos ao vivo de 6h30 e duramos o programa quase inteiro. No intervalo, preparamos a matéria que iria ao ar no jornal do meio dia e, de meio dia, entramos ao vivo novamente para mostrar a situação naquela hora. Então, ficamos até 13h45, finalizando a reportagem.

 

 

réu, Eduardo Gomes da Silva:

Levantei perto de 4h para ir à Comunidade ajudar quem eu pudesse. Quando cheguei, me deparei com o esquema montado e tive a sensação de que estava acontecendo uma guerra, que havia acontecido um ato de terrorismo ou que iriam prender o pior chefe do tráfico do país. Eu fiquei chocado. A quantidade de viaturas e batalhões era tanta que os próprios policiais estavam falando que não havia necessidade de tudo aquilo. Só em ver as famílias eles estavam percebendo que a índole das pessoas era boa. Boa parte dos policiais estava lá porque tinha que exercer sua função e, conversando com eles, ouvi que eles não queriam estar ali. “Estamos aqui porque é a nossa farda, o nosso dever”, me disseram. Não eram todos que tinham essa consciência, claro. Então, lançaram muitas bombas de efeito moral. Teve gente que apanhou, também. Fiquei comovido por causa das crianças, dos idosos, dos doentes. Tinha uma mulher que estava de cama, tinha cadeirantes. Ajudei muitas  dessas pessoas a tirar as coisas de suas casas.

 

réu, Pedro Caetano:

Às cinco horas da manhã, escutei o galego que morava perto da entrada avisando que havia algo errado. Disse: ‘Pedro, o pessoal tá todinho aí! Tem uns 300 policiais’. Fiquei sem ação. Fui para a frente da ocupação, com a farda de gari da prefeitura porque já estava me arrumando para ir trabalhar. No caminho, percebi muita gente desocupando e achei isso muito precipitado. Por que desocupavam sem nem saber o que está acontecendo? Ninguém sabia se ia ter um diálogo, uma negociação. Vi que o líder forçou o fechamento dos portões, mas teve dificuldade, porque muita gente já queria sair antes de acontecer qualquer confronto.

Quando cheguei lá na frente estava o batalhão de choque querendo entrar e o líder, Inaldo Monteiro, mandou a gente confrontá-lo. Havia outros dois líderes que não tinham chegado – nenhum deles morava na Comunidade – e ficamos sem saber como proceder. Começamos, então, a jogar pneus, garrafas, pedras, qualquer coisa que vinha pela frente. Não para bater, mas para afastá-los. Aí depois começaram a jogar para bater e virou uma coisa sem sentido, na minha opinião. Depois disso ele mandou que a gente tocasse fogo nos barracos que estivessem vazios. Eu não estava entendo o motivo daquilo e resolvi sair da ocupação.

Fui procurar meu amigo Julito, que também morava lá, mas estava no trabalho, em uma oficina perto da Comunidade. Perguntei sobre as outras lideranças, porque não concordei com o que Inaldo estava mandando a gente fazer. Na minha cabeça, aquilo ia nos prejudicar muito. Não tínhamos como suportar uma ação absurdamente forte como aquela. O outro líder chegou, mas ninguém conseguiu falar com ele, porque Inaldo colocou ele para correr. Quem estava perto, ouviu o plano que o outro líder tinha: fechar as casas e ocupar a Prefeitura.

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Pedro foi atingido por uma bala de borracha. Créditos: Paulo Trigueiro.

Pedro foi atingido por uma bala de borracha. Créditos: Paulo Trigueiro.

Eu fiquei discursando lá na frente para que eles fossem atrás de quem realmente deveriam ir, tentando colocar algo na cabeça deles. Acabaram disparando uma bala de borracha contra minha coxa. Foi aí que comecei a pensar na possibilidade de atirarem de verdade. Sabe? “Se não sair, mata.” Já vi muitas desocupações na vida, mas foi nessa em que me senti menor. Não dá pra ser nada frente a 300 policiais.

Eu não desocupei o meu barraco,  o último da Comunidade. Eu me agarrei na esperança de que, quando o trator chegasse lá, eu conseguiria trancar tudo e ficar dentro. Eu mantive essa ilusão. Não dá para desistir de um sonho. Por isso não tive tempo de desocupar quando o trator chegou, já no início da noite. Eu expliquei que tinham dois filhotinhos de cachorro dentro de casa e perguntei se eles iam derrubar assim mesmo. Disseram: “Rapaz, se você conseguir tirar eles, tire”. Fui lá dentro, procurei muito, mas não os encontrei. Os homens, apressados, disseram que iam derrubar e que os cachorros teriam a possibilidade de sair quando ouvissem o barulho. Para você ver como é a humanidade. Eu consegui salvá-los, por fim. Depois dei uns e os outros se perderam. Mas presenciei eles derrubando outras casas com cachorros, coelhos e outros bichos dentro. Eles queriam cumprir um horário. Era sempre o que eles diziam. Até chegar a um ponto desse, a gente não sabe realmente em que país a gente mora.

 

réu, Tatiana da Conceição:

 

DEPOIS

Dia após

No dia seguinte à desocupação, muitos objetos continuavam no local. Créditos: Paulo Trigueiro.

 

ex-moradora, Izabel Nascimento:

Dormi na rua naquela noite. Muitos fizeram isso. Preparamos uma lona para dormirmos ali, na Avenida Recife, mesmo. E os policiais vieram tratando a gente como bandido e ameaçaram levar a filha de uma amiga minha para o Conselho Tutelar porque ela estava na rua. Meus objetos,  não consegui salvar todos, porque não tinha para onde levá-los e porque não nos deram tempo. Levaram algumas coisas de alguma pessoas. Não tudo. Porque anoiteceu e eles disseram: “acabou o tempo”. Ainda não fui buscar o que levaram meu porque não tenho como conseguir um carro.

Hoje estou vivendo dentro de um barraco da Comunidade que não foi derrubado. Dali, consigo sair para vender meus bolos e fazer as coisas que preciso. Mas a diferença é muito grande em relação a antes. Sinto falta das pessoas, que viviam como se fosse uma grande família, e me incomodo com a presença frequente da polícia, porque nos tratam como bandidos e reviram nossas coisas. É um local muito perigoso por causa do tráfico, diferente da área desocupada.

 

_MG_0085ex-morador, Pedro Caetano:

Eu perdi tudo que tinha no meu barraco, menos uma furadeira e uma lixadeira que utilizo para fazer trabalhos artesanais em garrafas. Perdi bicicleta, enxada, todas ferramentas necessárias pros bicos que faço. Perdi as centenas de livros que eu peguei do lixo quando trabalhava de gari e o sonho de criar uma biblioteca na comunidade. Mas o pior é esforço, que não dá pra medir em termos de perda. Eu construía o barraco de noite, de madrugada, chateando os vizinhos, que perdiam a paciência por causa do barulho. A desocupação foi no dia 28 de maio e eu não tinha recebido meu salário, o que inviabilizou uma mudança. Eu passei mais de três meses para construir a estrutura daquele barraco, levando madeira quase diariamente depois do trabalho. Levava no lombo, mesmo. Como eu poderia retirar tudo num dia só?

É tudo maquinado e desumano. Eles desocupam e passam nos ferros-velhos avisando o que aconteceu para que uma enxurrada de carroceiros venha levar alumínio, ferro, plástico e tudo que lhes servir. Não dava para a gente parar essas pessoas.

Pedro Caetano

Pedro Caetano foi demitido e passou a trabalhar de maneira informal. Créditos: Paulo Trigueiro.

Eu passei os três dias seguintes morando em uma espécie de tenda que montei com alguns outros moradores, entre eles Tião. Depois de uns dias, levei a tenda para uma parte da desocupação que não foi derrubada. Mas tinha um ladrão lá. Eu e os poucos que ficamos comprávamos ferramentas para trabalhar e ele levava. Gastei meu salário todo tentando ficar naquele local, sem sucesso. Tive uma depressão muito forte e só agora, depois de conversar muito com meu amigo Julito sobre o assunto, na tentativa de tirá-lo da minha mente, estou começando a me estabilizar. Fui morar na casa da família da minha esposa, de favor. É onde estou agora. E o terreno do Cacique está desocupado. Voltou a ser um ponto de drogas e prostituição, como era antes de ocuparmos.

Uma das consequências da desocupação para mim foi a perda do meu emprego de gari. Faltei o trabalho nos dias seguintes à reintegração porque estava numa situação degradante. No total, foram cinco faltas. Quatro meses depois, fui um dos escolhidos para ser demitido por corte de gastos. Procurei saber porque estava na lista, já que trabalho com dedicação, não fico jogando conversa fora nem fazendo corpo mole. Explicaram que as faltas daquela época foram o critério de decisão. Hoje, sigo fazendo bicos de limpeza, artesanato em garrafa e comecei a criar peixes ornamentais em tanques. É um pouco complicado porque a casa não é minha. Mas a gente vai vivendo. Tem que ser, né?

juíza federa, Joana Carolina Lins:

Disponibilizamos a garagem dos carros oficiais do nosso prédio para abrigar os objetos das pessoas que foram desocupadas. Alguns ainda não vieram buscar os seus pertences.