A proximidade do Aeroporto do Recife

O processo que resultou na expulsão dos moradores da Comunidade Cacique Chicão é uma ação de reintegração de posse proposta pela União Federal contra as pessoas que estavam ocupando irregularmente um de seus terrenos. Localizada à margem da cabeceira da pista de pouso do Aeroporto do Recife, a ocupação irregular acabou motivando a Infraero a ingressar no processo como assistente.

“Juridicamente, a questão é fácil. Porque, havendo a ocupação irregular de um terreno, a resposta imediata da Justiça é a ordem de desocupação”, explicou a juíza da 12ª Vara Federal ,  Joana Carolina, responsável pelo caso. “Mas este acabou sendo um veredicto muito difícil porque eu conheci os moradores durante as audiências e ouvi seus dramas pessoais. Não sou insensível a eles. Mas proferi a decisão pela desocupação por força das circunstâncias.”

De acordo com a juíza, a Infraero, através de seu chefe de segurança, frisou com freqüência que a permanência da Comunidade no terreno poderia resultar em acidentes aéreos e que a vida dos moradores estava em risco. Segundo Joana Carolina, dois incêndios ocorridos em barracos da Cacique Chicão foram levados em consideração como potenciais fatores de risco para os vôos operados no local. “Se houvesse um acidente aéreo, sem dúvida eu seria responsabilizada”, avaliou. “Outro dado importante é que ali passa uma linha férrea, na qual um trem de manutenção circula junto à comunidade.”

O risco mais grave existente na permanência da Comunidade é o aviário, segundo o superintendente da Infraero, Alexandre Oliveira Silva. “Normalmente as ocupações não têm saneamento básico nem recolhimento de lixo e o acúmulo de resíduos sólidos atrai aves. A presença de pássaros no entorno do aeroporto é sempre perigosa pelo risco de colisão, e é tudo o que nós não queremos. O custo de reparo dos aviões que são impactados pelas aves é muito alto, prejudicando a indústria”, esclareceu.

Uma empresa de rações também localizada próxima à cabeceira do aeroporto foi interditada por atrair pombos ao local anteriormente à chegada dos ocupantes da Cacique Chicão. Após registros de colisões, a Infraero acionou a Justiça e a empresa foi interditada por cerca de quatro meses, enquanto se adequava aos termos de conduta definidos em juízo. Posteriormente, voltou a funcionar sem atrair os pássaros.

“O pombo é um pássaro pequeno, mas pode causar um dano considerável, dependendo da aeronave”, justificou Alexandre. “Os urubus, mais ligados aos resíduos sólidos, são maiores e podem causar colisões mais sérias. Além disso, 80% dos acidentes aéreos ocorrem no início e no fim dos vôos, período em que as aeronaves estão mais próximas do aeroporto. Essa estatística se relaciona com o perigo vivido pela população da Comunidade.”

O ruído provocado pelas aeronaves também foi uma das preocupações do superintendente da empresa em relação à ocupação. Alexandre sugeriu que, depois de enraizadas, as comunidades erguidas próximas a aeroportos sentem-se incomodadas pelo ruído causado pelos vôos operados. “Com isso, passa a haver restrições nas decolagens e pousos para que a população possa dormir. Mesmo que o aeroporto tenha chegado antes”, previu. “Essa situação aconteceu em Congonhas e no Rio de Janeiro, onde os vôos param entre as 22h e as 6h. O impacto é sentido, por fim, na economia do Estado”.

Por outro lado, a advogada da Comunidade, Maria José do Amaral, ponderou que a desocupação não poderia ter ocorrido naquele momento. “Por força de um tratado internacional que o Brasil assinou em Istambul, na Turquia, quem tirar alguém de um lugar por força de despejo forçado é obrigado a alocá-lo em outro lugar”, argumentou. “Enviamos ofício lembrando o tratado para a Secretaria Geral da Presidência da República. Ela nos respondeu, também por ofício, afirmando ter dado início a um processo administrativo para implementação do auxílio-aluguel.”

“As opções eram ‘sair’ ou ‘ser saído’.”

Ainda segundo a advogada, a resposta da Secretaria foi juntada ao processo, mas não houve manifestação de interesse judicial. “Apenas esse ofício não quer dizer que o despejo esteja obstado, mas embargamos o processo por omissão legal e fomos surpreendidos com a desocupação”, queixou-se. “Também compreendemos que as audiências foram audiências-álibi, porque o Conselho Nacional de Justiça já indica que elas são necessárias em casos de conflito. Além disso, não houve alternativa de conciliação. As opções eram ‘sair’ ou ‘ser saído’.”

A juíza Joana Carolina arguiu que as alternativas de moradia encontradas pelos poderes públicos funcionariam apenas a muito longo prazo, o que inviabilizava a espera. “A prefeitura afirmou que há programas de habitação e as famílias do Cacique Chicão poderiam ser inseridas no final de uma lista extensa de pessoas que já esperam pelos programas”, alegou. Em uma das audiências de conciliação, a secretária executiva de Habitação do Recife, Renata Lucena, revelou que o auxílio moradia estava inchado.

“No Recife não há área disponível para assentar ninguém.”

“Um dos grandes problemas que nós temos em Recife é que não há área disponível para assentar ninguém. A prefeitura fez um levantamento e chegou à conclusão de que não existe um metro quadrado desocupado sequer. Se houver, pertence ao setor privado. O estado dispõe de algumas áreas na Região Metropolitana do Recife, mas que já estão com demandas definidas”, afirmou o gerente geral da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do estado, Josenildo Sinésio.

 

Não convencida de que a falta de terrenos ou o inchaço do auxílio-moradia exime o Estado de cumprir o tratado assinado a Constituição, a advogada da Comunidade constatou outros porquês para a desocupação do Cacique Chicão.

Exceção de suspeição

No mês seguinte à desocupação, a advogada da Comunidade, Maria José do Amaral, arguiu a suspensão da juíza Joana Carolina do processo. Através de um recurso chamado “exceção de suspeição”, a defensora da comunidade pediu formalmente ao Tribunal Regional Federal que a magistrada não julgasse casos relacionados aos sem-teto ou conflitos que envolvessem o terreno da Região Metropolitana do Recife.

Para materializar a suspeita, a advogada lembrou que a desocupação ocorreu mesmo depois que a Secretaria Geral da Presidência da República informou ter aberto processo administrativo para implementar o auxílio-aluguel . Além disso, criticou o uso excessivo da força policial na desocupação, descreveu um processo de intimidação por parte da Polícia Federal a mando da magistrada e argumentou que as relações matrimoniais da juíza interferiam no seu julgamento.  “Havia praticamente um policial para cada habitante, incluindo os bebês e crianças. Esse número está interligado a um fato que descobrimos depois da reintegração de posse concluída:  a doutora Joana Carolina é casada com um executivo de uma grande construtora que faz parte do Consórcio Novo Recife”, dissertou.

Na opinião da jurista, a importância do matrimônio no julgamento do processo extrapola o terreno ocupado pela da Cacique Chicão. “O Novo Recife tem litígios numa cidade que luta pela regularização do espaço urbano. E a força policial utilizada, – inclusive bastante custosa para o Estado -, amedronta quem quer brigar por ele. A ação avisa que essa luta pode ser perigosa, que o Estado pode machucar. Diz: ‘é melhor desistir. O Estado é grande, você é pequeno e está desarmado’”, teorizou.

“Não vejo relação entre meu matrimônio e o caso.”

Joana Carolina não aceitou o recurso e se defendeu por escrito e formalmente perante a Corregedoria do TRF. “Não vejo relação entre meu matrimônio e o caso, porque não há nenhum interesse privado nesse processo, já que o terreno é não-edificante. Respeito a argumentação, mas a advogada faz um recorte na minha vida e desconsidera toda formação intelectual e humanística que tive. Eu cresci lutando contra toda e qualquer forma de injustiça”, desabafou. Em processos que envolveram diretamente a empresa para a qual o marido trabalha, Joana Carolina se declarou suspeita voluntariamente, negando-se a julgá-los.

Uma ocupação chamada Vila Sul, vizinha ao terreno do Cais José Estelita, comprado pelo Consórcio Novo Recife, foi também sorteada para a vara federal em que a juíza Joana Carolina é titular. “Essa ocupação, sem dúvida, diminui o valor do empreendimento. Mas tem um contingente muito maior que a Cacique Chicão e é muito mais complicada de ser despejada. Assim, uma situação em que parece não haver interesse privado, pode sim, ser utilizada com esse fim”, concluiu a advogada. “A desocupação do local estava marcada para logo depois da reintegração de posse do Cacique Chicão, mas o processo foi interrompido para que se resolvesse essa questão da exceção de suspeição.”

Maria José fundamenta a suspeita a partir da teoria do sociólogo alemão Niklas Luhmman que afirma que o sistema jurídico de países em desenvolvimento é aplicado de forma “alopoiética”, ou seja, admitindo distorções por códigos que não são de Direito. Assim, questões matrimoniais, familiares, consanguíneas, econômicas e políticas interferem em decisões judiciais. “Não estou dizendo que ela esteja vendendo sentença por estar casada com o executivo de uma construtora. E, sim, que ela sofre interferência alopoiética e que não tem a isenção necessária para lidar com litígios que envolvem o território da Região Metropolitana do Recife” explicou.

Alguns dias após a desocupação, a advogada realizou, no auditório da sede da OAB, um ato de repúdio à forma como aconteceu a reintegração de posse. A Central de Movimento Popular e a Associação Brasileira dos Advogados do Povo, que a própria representa em Pernambuco, convidaram para o evento 14 autoridades – entre elas o comandante do Batalhão de Choque, os corregedores do TRF e TJPE, o Superintendente da Polícia Federal e diversos políticos. No dia do ato, o auditório estava lotado, mas, dos convidados, apenas o deputado Edilson Silva esteve presente.

O juiz não pode prestar jurisdição sem a parte prejudicada pedir

“Em menos de uma semana eu fui intimada para prestar esclarecimentos na Polícia Federal sobre o evento que houve na OAB. Quando pedimos cópia do inquérito, constava que a juíza Joana Carolina havia enviado fotografias do evento, assim como fotografia da minha página do Facebook com o cartaz-convite e pedia que a situação fosse investigada”, relatou. “É nesse contexto que eu lembro que, de acordo com o artigo II do Código Processual Civil, o juiz não pode prestar jurisdição sem a parte prejudicada pedir.”

Joana Carolina alegou que o caso foi um mal-entendido. “A desocupação não foi fácil de ser operacionalizada. E, depois que ela ocorreu, nós tivemos notícia de que havia tentativas de reocupação do terreno. Isso configura um descumprimento de decisão judicial e existe um crime no Código Penal que é o crime de desobediência. Diante dessas tentativas de reocupação eu enviei um aviso para a Polícia Federal investigar eventual prática deste crime”, explicou. “Não enviei nomes, de maneira nenhuma. Eu só soube do caso de Maria José depois que tudo aconteceu. Foi um procedimento da PF para apurar esse delito de desobediência que foi mal interpretada.”

A juíza questionou ainda a temporalidade do recurso. Segundo ela, a exceção de suspeição deve ser arguida assim que o advogado descobre quem será o juiz do processo ou assim que surge algum fato que ponha em dúvida a imparcialidade. “Ela o fez depois de todas as audiências e apenas depois da decisão de reintegração de posse. E ela me conhece desde a graduação em Direito. Fomos contemporâneas na Faculdade de Direito do Recife. A formulação de suspeição não foi oportuna”, opinou.

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