Episódios racistas ao longo da história

O futebol chegou ao Brasil com status de esporte de elite. Na Inglaterra, já era praticado por operários de fábricas, mas chegou nas Américas por meio de estudantes de classe alta, que voltavam do Reino Unido com bolas e chuteiras na bagagem, como foram os casos de Charles Miller e Oscar Cox, os pioneiros da modalidade no Brasil.
 
O futebol manifestava um dos problemas cruciais da transição do Império para a República do Brasil, ou seja, a integração do negro na sociedade de classes. A abolição, sem a reforma agrária, privou os negros recém-libertos e seus descendentes de condições mínimas para que pudessem iniciar uma nova vida. Os inúmeros preconceitos bloquearam a incorporação dos negros na indústria nascente e no setor de serviços. E tudo isso respingou no futebol…

A pele preta num esporte
de elite

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Linha do Tempo

Brancos contra pobres

Nesse processo de democratização da prática do futebol, um dos momentos mais tensos foi a inserção do negro nos grandes clubes e principais campeonatos do futebol brasileiro. As primeiras evidências de racismo estiveram presentes numa fase muito importante de sua história: a passagem do amadorismo para o profissionalismo. Essa transição no futebol foi marcada pelo ingresso de atletas pertencentes às classes populares menos abastadas, formando equipes especialmente de negros e mestiços.

A presença de jogadores negros e mestiços nos clubes pequenos era tolerada pela aristocracia, desde que não incomodasse o poder dos grandes clubes. Para as classes dominantes, era até bom jogar contra uma equipe formada por negros, mestiços e brancos pobres, uma vez que, ao derrotar esse time, estava sendo ratificada a preponderância de classe e de cor.

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1905

O pioneirismo do Bangu

Não demorou muito para que o futebol conquistasse os operários e trabalhadores do Brasil. O exemplo mais simbólico é o do Bangu Atlético Clube, time fundado por ingleses, mas formado, em grande parte, pelos operários da Fábrica de Tecidos Bangu, no subúrbio do Rio de Janeiro. O clube foi o primeiro no estado a escalar um atleta negro: Francisco Carregal, em 1905. Isso fez com que, em 1907, a Liga Metropolitana de Football (equivalente à atual Federação do Estado do Rio de Janeiro – a FERJ) publicasse uma nota proibindo o registro de “pessoas de cor” como atletas amadores de futebol. O clube, então, optou por abandonar a Liga e não disputar o Campeonato Carioca.
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1905

Vitória do Vasco da Gama com jogadores negros

O Bangu ficou conhecido como um clube símbolo da luta contra o racismo no futebol brasileiro, mas foi o Vasco da Gama que entrou para a história ao conquistar um título com um plantel composto quase que inteiramente por jogadores negros, muitos deles “contratados” junto ao Bangu (à época, o futebol ainda era amador, e não haviam contratações formais de atletas). O clube, que em 1905 já havia elegido um presidente mulato — Cândido José de Araújo —, foi campeão carioca em 1923, seu ano de estreia na Primeira Divisão, e despertou a ira dos rivais. No ano seguinte, Fluminense, Flamengo, Botafogo e outros times abandonaram a Liga e fundaram a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA), entidade à qual o Vasco só poderia se filiar se dispensasse seus 12 atletas negros.

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1914

O famigerado pó de arroz

Tática semelhante foi usada por Carlos Alberto, jogador que trocou o América pelo Fluminense em 1914. Como a camisa branca do clube de elite da zona sul contrastava com sua pele mulata, Carlos Alberto entrava em campo maquiado com pó de arroz. Ao longo da partida, o material ia escorrendo junto ao suor. Naquela época, o pó de arroz era usado como base para deixar a pele mais homogênea, com menos marcas, mais bonita e mais jovem.
A torcida então passou a gritar “pó de arroz”, que posteriormente se tornaria um apelido dos apoiadores do Fluminense. Alguns registros também apontam que o clube era chamado de “pó de arroz” pela sua formação social e pela participação das mulheres na torcida.

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1919

Olhos azuis, cabelo esticado

Apesar da forte presença do racismo no futebol brasileiro no início do século XX, o primeiro grande ídolo da modalidade no país foi justamente um mulato. Filho de um alemão com uma brasileira negra, Arthur Friedenreich foi o maior jogador brasileiro na época do futebol amador. Autor do gol que daria o primeiro título à Seleção Brasileira, o Campeonato Sul-Americano de 1919, Friedenreich era mulato e tinha olhos verdes. Antes de entrar em campo, o atacante esticava o cabelo, tomando uma maior parte da cabeça para parecer mais branco.

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1930

No Fluminense, jogadores só pela porta dos funcionários

O Fluminense, aliás, também teve sua participação na luta contra o racismo no futebol, apesar de involuntariamente. À medida que a presença de negros e mulatos foi se tornando cada vez mais aceita dentro dos elencos – ou necessária, pois o nível do futebol praticado em campo ia melhorando e os times se viam obrigados a contar com jogadores de todos os tons de pele para poder competir em pé de igualdade com seus rivais – o clube das Laranjeiras viu aumentar o preconceito dos sócios com os jogadores negros que frequentavam sua sede.

Como uma medida para separar sócios de jogadores, o Fluminense entrou na briga pela profissionalização do futebol no início da década de 1930, fazendo com que seus jogadores, que passavam a ser empregados assalariados, entrassem na sede das Laranjeiras pela porta de funcionários e não mais tivessem contato com os sócios elitistas.

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1938

O aporte da profissionalização

A profissionalização do futebol no Brasil foi um grande passo para a redução do racismo no ambiente do esporte. Como os atletas passaram a ser contratados e pagos de acordo com seu nível técnico, a cor de pele dos jogadores deixou de ser um empecilho profissional. A nova situação do futebol brasileiro propiciou o reconhecimento de talentos como Leônidas da Silva, o Diamante Negro, que encantou o mundo na Copa do Mundo de 1938, na França. Antes disso, a presença de negros na Seleção Brasileira ainda era vista com maus olhos.

Em 1921, por exemplo, o então presidente da República, Epitácio Pessoa, sugeriu que não fossem convocados jogadores negros para a disputa do Sul-Americano daquele ano. De acordo com ele, deveria ser projetada no exterior “uma imagem composta pelo melhor da sociedade brasileira”.

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1980 - 2000

Jornalismo racista

Muitos pesquisadores ainda tentam entender a ausência do debate sobre racismo no fim do século XX. Os casos não se restringiam aos campos, vestiários e bastidores, mas estampavam jornais, programas televisivos e noticiários radiofônicos. Os insucessos da Seleção Brasileira em edições sucessivas da Copa do Mundo, como 1982, 1986 e 1990, trouxeram elementos capazes de apontar uma diferença no tratamento de jogadores brancos e jogadores pretos. É o que exemplifica essas manchetes do jornal O Dia, do Rio de Janeiro, nos tratamentos a Dunga e Ronaldinho Gaúcho, dois dos maiores emblemas da história da Seleção Brasileira:

“Já era Dunga. Não deu certo a tentativa de esquematizar o futebol brasileiro, abrindo mão do talento natural e do improviso em benefício de um padrão mais rígido, de marcação, ao estilo europeu, acabou na desclassificação (…) A Era Dunga não chegou (…) O proveito da derrota passa pela necessidade do reexame desses conceitos de futebol-força.” (25/06/1990)

“Ronaldinho amarela antes do jogo e abala a seleção.” (13/07/1998)

A mídia, na entrada dos anos 2000, colaborou diretamente para a existência de cunhos racistas que ganharam a mesa do bar, as reuniões nas ruas e, principalmente, os torcedores nas arquibancadas. Expressões como “coisa de crioulo”, “preto quando não suja na entrada, suja na saída”, “negrinho”, “negrão”, “dinheiro branqueia”, “negro de alma branca”, “negro de vergonha na cara”, “negro limpo” foram ganhando ainda mais força no dito popular.

O estereótipo presente em análises referentes ao jogo propriamente dito ganhou páginas e mais páginas naquilo que conhecemos como jornalismo esportivo. A associação de força com a cor da pele, além da sutileza e talento atribuídos ao que é “divino” fazem com que alguns desafios sejam encarados até os tempos de hoje, com episódios como o protagonizado pelo narrador Haroldo Souza, da Rádio Grenal, que chamou, no início deste ano, o jogador Lucas Braga, do Santos, de “crioulinho”.
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2010 -

A pressão das redes sociais

Episódios recentes ajudam a entender a forma como o racismo é vigiado num momento tão complexo da sociedade, onde as informações circulam e, consequentemente, há maior cobrança. Em 2014, o goleiro Aranha, então no Santos, foi chamado de macaco em uma partida diante do Grêmio, no Rio Grande do Sul. A exclusão do time gaúcho na competição e o indiciamento de quatro torcedores envolvidos no episódio são encarados como uma virada de chave no combate ao racismo no futebol brasileiro.

Naquele mesmo ano, um episódio sofrido pelo multicampeão Daniel Alves no futebol espanhol fez com que as redes sociais entrassem numa grande mobilização chamada “Somos todos macacos”. No caso, um torcedor do Villarreal atirou uma banana em direção ao atleta, que defendia o Barcelona. A cena do lateral-direito recolhendo a fruta e mordendo rodou o planeta, com diversas manifestações de apoio sendo compartilhadas, fazendo alusão à banana e ao sentimento de solidariedade à vítima.

Os sucessivos casos sofridos por brasileiros dentro e fora do país aumentaram ainda mais a pressão para que as entidades sejam mais rígidas no combate aos agressores. Na 21ª rodada da Série B de 2021, o meio-campo Celsinho, do Londrina, registrou boletim de ocorrência por ouvir, de um membro do staff do Brusque: “Vai cortar esse cabelo, seu cachopa de abelha”. Caracterizado por injúria racial, o episódio foi registrado na súmula do árbitro da partida e o Superior Tribunal de Justiça Desportiva, o STJD, puniu o Brusque com a perda de três pontos na segunda divisão do futebol brasileiro.