O racismo portenho

Num contexto parecido com o do Brasil, o futebol foi introduzido na Argentina durante a metade do século XIX, após as diversas expedições do Império Britânico nas colônias espanholas na América Latina. O esporte era caracterizado como passatempo da elite local, mas o começo do século XX trouxe um maior interesse dos jovens dos setores médios e populares, em sua maioria estudantes, pequenos comerciantes, profissionais e trabalhadores urbanos, os quais progressivamente começaram a formar suas próprias instituições e competições para o desenvolvimento do jogo.

A discriminação enraizada no futebol local

Com quase 3 milhões de habitantes, Buenos Aires é a cidade que tem a maior concentração de times de futebol das Américas, de acordo com o site Paladar Negro – especialista a relação do futebol com o aspecto socioeconômico de cidades pelo planeta. Ao todo são 29 clubes profissionais, alguns deles quase que amadores, mas participantes de uma das divisões do Campeonato Argentino.

Diferente de vários lugares, cada clube representa seu bairro de origem. Torcer por determinado time significa defender sua gente, sua região, suas raízes. E daí é que temos vários clássicos dentro de uma mesma cidade, pois enfrentar um time de um bairro vizinho não envolve só futebol.

“Na Argentina existe um racismo e uma xenofobia latentes, que atravessam todos os setores sociais. Apesar de muitos argentinos serem racistas e xenófobos – o que fica em evidência em piadas, brincadeiras e comentários -, poucos argentinos se consideram preconceituosos. Um elemento que complica o panorama é que as categorias raciais no país são confundidas com categorias socioeconômicas. Desta maneira, dizer que alguém é um “negro de merda” significa dizer que essa pessoa, em primeiro lugar, não é europeia. Em segundo lugar, que é pobre e marginal. São duas faces da mesma moeda. A ideia de “negritude” não remete a significados vinculados a uma herança afroargentina, e sim ao indígena. Essa matriz cultural racista existe de forma latente e os conflitos sociais, além da polarização política, só potencializam a situação”, afirma Javier Bundío, antropólogo da Universidade de Buenos Aires. Em seu doutorado, ele estudou o comportamento das torcidas argentinas nos estádios no trabalho “La construcción del otro en el fútbol. Identidad y alteridad en los cantos de las hinchadas argentinas”

Exemplos que ajudam a contar a história

Criado em 1995 pelo Governo Federal para monitorar casos de preconceito na Argentina, o Instituto Nacional Contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo – Inadi, aponta que o motivo número um para a discriminação no país é a origem das pessoas.

Como Bolívia e Paraguai são duas nações fortemente marcadas por suas raízes indígenas, o tom de pele dos seus cidadãos é mais escuro que o do argentino médio. Portanto, não é difícil ouvir os “boliguaios” sendo chamados de negros por lá.

“Não há como dissociar o futebol das mazelas que atingem todas as camadas da sociedade de um país tão complexo como a Argentina. Embora haja estereótipos que são fáceis de ser identificados e analisados, as raízes dessas relações entre diversos grupos étnicos explicam que vai muito além de querer desqualificar: é algo passado entre gerações e, ao longo da história, pouco foi feito para minimizar esses problemas”, aponta Cristiano Munari, jornalista da Gaúcha ZH e especialista em futebol argentino.

Torcida do Independiente portando bandeiras da Bolívia e do Paraguai. Foto: www.futbolalogrande.com

Hoje ponto turístico obrigatório da região sul de Buenos Aires, o humilde bairro de La Boca tem suas origens ligadas aos operários. Localizado próximo ao porto, ele sempre foi moradia de imigrantes recém-chegados. Foi nessas redondezas que, no início do século XX, enquanto a popularidade do futebol crescia, imigrantes italianos fundaram os dois clubes mais populares de toda a Argentina: o River Plate e o Boca Juniors.

Quis o destino que esse clássico de bairro se tornasse o maior do país, com a rivalidade se acirrando ainda mais depois que o River deu as costas à região, mudando-se para uma área mais nobre, enquanto o Boca ficou, junto ao seu clássico e temido estádio, La Bombonera. Com raízes preservadas e ligadas aos estivadores do porto da cidade e dos carvoeiros da linha férrea, o clube virou o “time do povo”. E, com isso, acabou também sendo alvo principal das outras torcidas quando o assunto é racismo.

“Os torcedores do Boca foram associados às comunidades de imigrantes italianos durante a primeira metade do século passado. A partir dos anos 90, foram apontados como imigrantes bolivianos e paraguaios. Há uma continuidade do estereótipo do torcedor do Boca como pobre, vulgar, sujo, marginal”, reforça Bundío.

Caso Carlos Lampe

Em 2018, o Boca Juniors contratou o goleiro Carlos Lampe, titular da seleção boliviana. Nas redes sociais, piadas e xingamentos múltiplos, partindo principalmente de torcedores do River Plate e Independiente, acabaram se proliferando.

A contratação, surpreendente para torcedores e imprensa, acabou gerando críticas. Porém, um episódio envolvendo dois jornalistas do programa Fútbol Al Horno, do Canal 26 (o comentarista Pablo Carrozza e o apresentador Flavio Azzarro), fez com que a opinião virasse um episódio grave de discriminação.

Carrozza mostrou uma camisa da Bolívia, com o nome de Lampe nas costas, mas faltando as letras “L” e “I” no nome do país. Questionado sobre o que havia acontecido, o jornalista declarou:

“Quem pegou foi o cachorro do Lampe. O cachorro do Lampe que pegou, o que você quer que eu faça? Me preocupo com esse rapaz porque ele pensa que é Evo Morales ou o ‘Diablo’ Etcheverry, grandes ídolos da Bolívia. Lampe, não vou te criticar porque você é boliviano, pois os bolivianos são trabalhadores, vou te criticar porque você não cansa de contar histórias e ainda não jogou.”

A resposta….

Na coletiva de apresentação, o arqueiro respondeu à repercussão negativa e proferiu uma declaração impactante, que ficou marcada na trajetória dele com a camisa auriazul:

“Agora Boca é a metade (dos argentinos), mais 11 milhões de bolivianos”.

Clássico de Villa Crespo

Chacarita Juniors e Club Atlético Atlanta, equipes de bairros vizinhos de Buenos Aires, protagonizam o Clássico de Villa Crespo. O Atlanta é um clube com raízes judias, o que sempre motivou cantos racistas dos rivais. Em 2012, o país inteiro se revoltou com os torcedores do Chacarita entoando a frase “vamos matar judeus e fazer sabão”.

Naquele mesmo ano, o Atlanta foi alvo de outra manifestação preconceituosa na partida contra o Nueva Chicago, que também possui uma rivalidade com os “Los Bohemios”. No jogo, válido pela 20ª rodada do Grupo A da Primeira Nacional, a segunda divisão do futebol argentino, o jogador Arnaldo González, do Nueva Chicago, agrediu um jogador adversário e foi expulso. Inconformado, partiu para cima do árbitro e teve que ser contido pelos companheiros.

Porém, o pior veio quando ele deixava o campo. Rumo aos vestiários, fez gestos antissemitas – uma kipá e a circuncisão – na frente dos torcedores do Atlanta. Avaliando o caso, a Associação de Futebol Argentino – AFA, puniu o atleta com dez partidas de suspensão.

Arnaldo González faz gesto em referência aos judeus. Foto: Reprodução/TyC Sports

A minoria

Após a abolição oficial da escravidão no país, em 1813, as pessoas escravizadas tiveram que lidar com péssimas condições de moradia, alimentação, higiene e saúde. Aqueles que não morreram doentes, nos surtos de cólera ou febre amarela, morreram nas guerras da Independência, na guerra contra o Paraguai e em outros confrontos. Os homens negros do país eram enviados para as lutas nas linhas de frente, mesmo sem receber treinamentos e instruções.

Mulheres negras não engravidavam de homens negros. Os traficantes de escravos se preocupavam e se empenhavam em barrar as relações sexuais entre as pessoas escravizadas, porque, além do preconceito, argumentavam que a gravidez prejudicaria o desempenho no trabalho e que a mãe poderia morrer no parto, passando a ser uma a menos nos afazeres.

“Existe uma relação direta entre o ‘embranquecimento’ da sociedade argentina com o crescimento do racismo. A reduzida população negra passou a ser encarada como invasora, doente, não civilizatória”, aponta o sociólogo Jonathan Felipe.

O embranquecimento nas quatro linhas

O Los Andes, de Lomas de Zamora, ao sul da Grande Buenos Aires, foi campeão da terceira divisão nacional em 1938. O artilheiro foi Manuel Da Graca. No ano de 1967, os “Las Mil Rayitas” (“As Mil Listrinhas”, apelido do clube em alusão à sua camisa), teve o filho de Manuel, Abel Da Graca, participando do elenco que subiu à primeira divisão.

Em 1994, mais de meio século depois de 1938, houve nova promoção do Los Andes à Segundona. Desta vez, com o neto Hernán Da Graca marcando até o gol do acesso.

“Nesse dia fui ao campo com meu pai e ambos nos abraçamos chorando quando Hernán fez o gol e essa foi a maior alegria que me deu o futebol. Em pouco tempo o velhinho nos deixou, mas pôde ver seu neto ganhar um acesso igual ao que eu e ele ganhamos”, escreveu em seu livro Abel, mulato filho de um negro e pai de um branco.

Hernán Da Graca comemora gol do Los Andes, 3 de julho de 1994. Foto: Arquivo/Futebol Portenho

Manuel, Abel e Hernán: a familía Da Graca. Foto: Arquivo/Futebol Portenho

AS RIVALIDADES COM OUTROS PAÍSES

Dentro de campo, os argentinos sustentam rivalidades históricas que vão desde os clubes até a Seleção Nacional. No continente, Uruguai e Brasil são os países mais vitoriosos e, por isso, já protagonizaram duelos inesquecíveis ao longo do tempo. Argentina e Uruguai fazem, inclusive, o “Clássico do Rio da Prata”, denominado o mais antigo da história do futebol. Finalistas da Copa do Mundo de 1930, os países se enfrentam desde 1902.
Foto: Conmebol
Com a consolidação do Brasil como a principal força do futebol mundial, a rivalidade com os brasileiros também foi aflorada. Discursos e expressões racistas eram vistos com frequência inclusive na imprensa. Um dos casos mais emblemáticos ocorreu nos Jogos Olímpicos de 1996, realizados em Atlanta, nos Estados Unidos. Após a classificação argentina para a final do torneio masculino de futebol, o jornal “Olé” se referiu aos brasileiros como macacos – na prévia da outra semifinal entre Brasil e Nigéria. Após uma tensa troca de mensagens entre as embaixadas, o jornal se retratou no dia seguinte.

Assim como acontece internamente, entre os clubes locais, manifestações racistas têm seus maiores registros em jogos de clubes. Só em 2018, inúmeros casos foram discutidos na imprensa sul-americana. Em fevereiro daquele ano, a Recopa Sul-Americana, disputada entre os campeões da Libertadores e da Copa Sul-Americana, foi manchada por insultos criminosos da torcida do Independiente, em direção à área destinada ao Grêmio, em Buenos Aires.

A exemplo do futebol brasileiro, a falta de punição é um dos grandes problemas para o combate aos casos de intolerância em solo argentino. Na opinião de Javier Bundío, o primeiro passo é tratar esses torcedores como pessoas normais, que sabem o que fazem, falam, gritam e apresentam nas arquibancadas.

“Através do Inadi, o Estado implementou o Plano Nacional Contra a Discriminação no Esporte. É um bom avanço, que contempla ações no esportes e a AFA (Associação do Futebol Argentino) implementa punições como suspensão de partidas e ameaça de perda de pontos. Uma das maiores dificuldades que existem é a naturalização das práticas discriminatórias. O torcedor vê isso como ‘folclore’, e não racismo. Faz mais de dez anos que trabalho com torcedores e posso dizer que não são animais irracionais, são pessoas como qualquer outra, que trabalham e vão ao estádio. Vejo também atores com enorme potencial para mudar as coisas, como as organizações de torcedores que combatem o racismo e o machismo, as torcidas antifascistas, as subcomissões de torcedores que criam eventos de conscientização no River Plate e no Banfield. Acredito em algumas dessas saídas para ver uma multidão que, a cada domingo, vai resistir em cantar essas músicas por considerá-las o que são: discriminação”, ressalta Bundío.