SOBRE O LUGAR DE ESCUTA
Por: Marcela Pedrosa
Durante os quatro anos de graduação, desenvolvi trabalhos sobre representatividade feminina, mas nunca sobre mulheres negras especificamente. O lugar de fala sempre foi uma questão para mim por achar que, sem intenções, poderia estar protagonizando uma luta que não é minha. Comecei então a questionar esse pensamento. Será que eu, como mulher branca e futura jornalista, não estaria sendo negligente com essas pautas ao simplesmente ignorar as possibilidades? Diante disso, pensei como poderia usar meu privilégio a favor da luta antisexista e antirracista.
O cenário vem se modificando, mas ainda é difícil observar mulheres negras convidadas para escrever artigos, apresentar programas, protagonizar novelas. A falta de representatividade é vista com muita naturalidade. A professora norte-americana Kimberlé Crenshaw usa o termo “interseccionalidade” para descrever o seguinte fenômeno: se um indivíduo está na mira de múltiplas formas de exclusão (raça, gênero, classe, capacidades físicas/mentais e etnia), então é muito provável que seja atingido por todas. Em resumo, parafraseando dona Alcinete Castro, mulher, negra e pobre “é dificuldade em tudo”. Para entrar na faculdade, para ter acesso à saúde, para ocupar um cargo executivo, para manifestar a identidade.
As mulheres negras (reconhecidas como pretas e pardas), no Brasil, representam 53% da população feminina. Em Pernambuco, esse percentual aumenta: 65,5% das mulheres no estado são negras, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Há muitas histórias que não só devem ser ouvidas, como também precisam ser narradas pelas protagonistas.
Nem todos os negros nascem sabendo que são negros. Isso porque crescem com a ideia de inferiorização da identidade a partir de vivências decorrentes do racismo estrutural. A história de como Débora Britto passou a se reconhecer como negra é mais comum do que a maioria das pessoas imagina.
Minha melhor amiga, com quem convivi por sete anos diariamente, viveu situação semelhante e ninguém tocava no assunto, nem mesmo a família. Passou por várias situações (explícitas) de preconceito racial no colégio – que deixaram marcas até hoje – e, na época, não conseguia entender por que precisava passar por aquilo. Somente quando concluiu o Ensino Médio e começou a ler sobre negritude, finalmente pôde se afirmar enquanto uma mulher negra. Durante a produção deste trabalho, tive a chance de refletir com ela sobre o impacto dessas experiências na sua vida.
É preciso também reconhecer o lugar de escuta e propor um convite para que mais pessoas o reconheça. Não tem como ser antirracista se você só discute os descalabros do racismo com negras e negros. Não dá para se apropriar do lugar de fala dessas pessoas, mas é dever de todos aproximar-se das suas reivindicações, enquanto houver uma relação de respeito pela luta desses grupos. A consciência racial, por exemplo, deve partir não somente daqueles que se reconhecem como negros, mas também dos que nunca sofreram algum tipo de opressão devido à cor da pele.
A autora Patrícia Borges compara a poesia às pessoas trans, travestis e não-binárias. “Na poesia, você pode fazer o que quiser: rimar, não rimar; usar várias palavras, usar apenas uma palavra; escrever textos longos ou curtos. É isso que nós, transgêneros, queremos na vida também”, diz. No entanto, a realidade é bastante diferente. Os direitos dessas pessoas são violados cotidianamente, sobretudo no Brasil, onde o número absoluto de assassinatos é o maior entre todos os países.
Refletir sobre a construção dessas identidades significa interromper o silêncio que naturaliza a transfobia. O debate acerca do tema ainda é pouco explorado, principalmente por quem não faz parte da comunidade LGBTQ+. Conhecer a história de Jarda Araújo – e tantas outras que vivenciam experiências semelhantes – e escutar o que elas têm para falar é um exercício de aprendizado que torna nítido o óculos embaçado da ignorância.
O jornalista, por sua vez, geralmente se apodera de um lugar social apto a contar fatos e narrativas. Desqualificar essa função não é o intuito. No entanto, vivemos um momento em que é preciso romper a ideia de “dar voz” a grupos minoritários. Não nos cabe mais a função de “porta-vozes” daqueles que na realidade têm sua voz silenciada. É preciso agora passar a consumir as narrativas de quem há muito tempo está tentando ser ouvido em primeira pessoa. O conceito de lugar de fala não condena a troca de ideias, nem defende a imposição de visões. Ao contrário: possibilita levantar debates com mais autoridade sobre os mais variados temas.
Dona Marta Moreira enfrentou dificuldades para criar cinco filhos que só ela é capaz de expressar. Quando perguntei por que ninguém acreditava que estava deprimida, ela disse: “Eu sempre estava na ativa, porque eu não podia parar. Acham que pobre não tem depressão”. O último estudo feito sobre a relação entre depressão e classes sociais foi em 2008, sob encomenda da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata). Tudo isso aponta como é urgente a discussão sobre a saúde mental de pessoas negras e os reflexos da invisibilização desses grupos.
Enquanto existem dados e estatísticas que demonstram a vulnerabilidade das mulheres negras, por outro lado, há também pessoas que praticam a afroconveniência. Basicamente trata-se da prática de pessoas não-negras usarem elementos próprios da cultura negra e tirar proveito disso. Na indústria cultural, celebridades e influenciadores digitais têm feito bronzeamento artificial, preenchimento labial, reestruturação dos fios lisos, têm usado maquiagens com tons mais escuros, entre outras intervenções, como uma espécie de “apropriação” da estética negra, alvo de críticas há muitas décadas. No entanto, qual branco quer realmente ser negro?
Sharon Baptista e Janaina Penha são duas mulheres negras que hoje buscam a representatividade nos mais variados espaços e a valorização de todos os corpos. É problemático quando pessoas brancas que incorporam essas características são aplaudidas, enquanto indivíduos negros não se vêem representados, tampouco são reconhecidos. Ou seja, os privilégios se mantêm.
Passar pela experiência de produzir o projeto Em Primeira Pessoa e escutar as histórias de Alcinete, Débora, Janaina, Jarda, Marta e Sharon aponta a necessidade dos brancos (homens e mulheres) se situarem na estrutura da sociedade e enxergarem as hierarquias, assim como de que forma seu lugar influencia diretamente a constituição dos lugares de grupos subalternizados.
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a minha querida professora e orientadora, Carol Monteiro, por confiar em mim e por me encorajar tanto durante todo o processo. Obrigada Jota Bosco pelo (grande) trabalho que vem realizando.
A dona Alcinete, Débora, Janaína, Jarda, dona Marta e Sharon que toparam participar do meu trabalho e dividir a história de vida comigo. Agradeço imensamente pelo gesto de confiança.
A minha família – meu pai Mano, minha mãe Patrícia, meu irmão Diogo e minha avó Cléa, e todos os outros que torcem por mim –, obrigada por me incentivarem desde o início do curso e sempre acreditarem no meu potencial, mesmo quando nem eu acredito.
Agradeço a Rômulo, Niedja e Joyss, que mergulharam de cabeça nas minhas ideias e tiveram muita paciência. Foram dias de muito trabalho, mas também tivemos momentos únicos que ficarão para sempre guardados na memória.
A Mateus, meu querido chefe, um exemplo de pessoa e profissional para mim. Sem a compreensão dele eu não conseguiria nem começar este projeto.
E, por último, agradeço à pessoa que tenho sorte de ter encontrado. Meu companheiro e melhor amigo André Luis, que esteve do meu lado, me apoiou, me tranquilizou e virou noites comigo para certificar-se de que tudo daria certo. E deu.
