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Mulheres do Passarinho

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Em novembro de 2015 houve uma Audiência Pública na Câmara de Vereadores do Recife para discutir a situação do bairro do Passarinho. Os moradores levariam uma carta com as principais reivindicações. Do outro lado, a Prefeitura iria enviar representantes das áreas demandadas no documento para esclarecer as críticas. Apenas dois secretários executivos compareceram ao encontro – a de Saúde e o de Educação. Neste período, eu estava estagiando no Diario de Pernambuco e fui escalado pelos meus editores para acompanhar o desdobramento da reunião.

De cara, notei que havia algo de diferente no ar. Em todos os momentos, do lado da comunidade, apenas mulheres se dirigiam ao microfone. Falavam dos problemas do posto de saúde, da deficiência na escola, da segurança insuficiente, da falta d’água, do transporte público precário e da poluição no rio que corta o bairro. Amparadas pela carta, elas protestavam e faziam uma leitura clara do direito à cidade sob a perspectiva feminista. Achei aquela reunião extraordinária, pelo todo de significado que ela carregava. Em um mesmo espaço de tempo, sujeitos e objetos históricos, ou seja, mulheres e periferia tomavam a dianteira de um processo de mudança dentro de um ambiente de poder. Antes, estas condições estavam restritas apenas a homens e aos grandes centros. Era a história sendo escrita a contrapelo, pelo confronto das ideias, dos gêneros e das classes.

De lá pra cá, acompanhado pela minha parceria de TCC, Rani de Mendonça, mergulhamos intensamente na vida de sete mulheres da comunidade do Passarinho. Fomos entender aquele movimento muito além das cartas, das audiências, do Ocupe Passarinho e das respostas, em nota, do poder público.Queríamos ouvir, em detalhes, quais as motivações para que todas aquelas mulheres com mais de 40 anos, negras e moradoras da periferia se dispusessem a lutar pelo coletivo, pelo bairro e pela cidade.

Mais do que uma descoberta a respeito da vida delas, foi um descortinar em cima de vários preconceitos e arcaísmo da minha própria personalidade. Me descobri machista, apesar de lutar contra o machismo diariamente, em situações que julgava ser delicadeza do cotidiano. Descobri o quanto pesa na vida das mulheres a presença de companheiros arredios, incompreensíveis, individualistas, possessivos e violentos, e como todas estas características estão presentes na arquitetura da cidade, fazendo dela um espaço hostil para as mulheres. Ficou visível, portanto, que a batalha delas acontece em dois fronts: em casa, contra os abusos de um casamento opressor, e na rua, contra um espaço urbano agressivo, constrangedor e violento. Além disso, descobri que é preciso ter muita coragem, força e desprendimento para lutar por um mundo melhor. E essa energia eu vi, por exemplo, nos olhos de Edcléa, que há mais de 30 anos vive sempre em nome da comunidade onde mora.

Foi fascinante conhecer de perto a história de sete mulheres que, apesar da sociedade machista, conseguem viver em voz alta, defender o lugar em que moram, lutar pelo direito à cidade e sempre pelo empoderamento feminino. Elas nos mostraram a vida e a cidade por trás dos números, traduzidas em sentimentos, memórias, afetos e muita narrativa. A lição que fica é de que nunca é impossível ou tarde para despertar politicamente. Basta ter a sensibilidade de sentir como se fosse na própria pele a dor do outro. É o que estas mulheres de luta fazem diariamente.

Isso só foi possível graças ao apoio incondicional e total compreensão dos meus pais Ciro e Alba; às correções, ponderações e conselhos dos meus orientadores Carla Teixeira e Flávio Santos; à minha amiga e companheira de TCC, Rani de Mendonça, que sempre tolerou o meu tempo, a minha disposição para escrever, e, com o amor que nós temos um pelo outro, foi uma fiel parceira nesta jornada; a todos os meus amigos, que colaboraram com uma conversa na mesa de bar e me despertaram para todas as ideias presentes neste trabalho; e a Phillipe e Terêncio, irmãos de todas as horas. Muito obrigado e boa leitura.

Afonso Bezerra.

 

Chegar ao final desse projeto comprova que trilhei o melhor caminho até aqui. Mais do que uma contadora de boas histórias, eu gosto mesmo é de ouvir gente. De saber sobre as relações, de entender as pessoas e, principalmente, de poder amá-las. As histórias de vida que compõem o especial Mulheres do Passarinho traduzem o que há de mais belo em nós. Elas nos carregam pelo colo, nos afagam e nos dão um sentimento de esperança mais ingênuo do que de uma criança.

Antes de mergulhar nesta empreitada com Afonso, eu estava passando por um processo de descoberta enquanto sujeita política muito forte. Estava cada vez mais imersa na perspectiva feminista, manifestando o que de havia de mais machista em mim e nos que amo. Caminho este nada fácil. Muito embora isso estivesse aflorando em meio a dor e lágrimas, feminismo é ideologicamente algo que me fascina. Ele me impulsiona para passos mais seguros.

Nas primeiras entrevistas encontrei um feminismo que sempre esteve muito além do que eu conhecia. Que não cabe em nenhum espaço do Currículo Lattes, tampouco nos livros e discussões ainda elitizadas. Eu ouvi mulher discursar e apontar saídas impensáveis até então. Por isso, encontrei mais uma enxurrada de desconstruções a serem feitas e pensadas. Me vi naqueles contextos, especialmente quando o assunto era negação do direito e da convivência saudável nas cidades, sobretudo nas periferias. Sofri com cada lágrima, ri com cada conquista. Aprendi com todas as histórias.

Nesse percurso fui questionada algumas vezes sobre a experiência de fazer um trabalho com essa temática na companhia de um homem. Ora, são eles os maiores responsáveis por nossas dores, não é? Não foi tarefa fácil, é verdade. Mas, foi prazeroso ver Afonso Bezerra se questionar várias e várias vezes sobre os seus privilégios enquanto figura masculina, sobre os gestos e as palavras que nos oprimem. Foi interessante acompanhar como Afonso foi respeitoso, o quanto ele se dispôs a entender sobre a hostilidade em que nós mulheres vivemos. E nessa parte eu tive a sorte de ter tido uma dupla completamente sensível e disposta a recomeços, mesmo.

Particularmente, fica um legado histórico de coisas incríveis que vivi na comunidade do Passarinho. Para isso, tive apoio de muita gente massa que me constrói diariamente enquanto gente. E teve muita gente envolvida nisso. Minha eterna gratidão e amor aos meus pais Francineth e Marcelo, meus irmãos Laio e Davi e meu namorado Átila. Minha eterna amizade a Helena e Kamyla, que foram parceiras compreensivas e entusiastas neste processo. E obrigada a todo mundo que de alguma forma desejou boas energias para esse projeto.

Eu e Afonso tentamos prezar ao máximo os detalhes presentes no universo feminino. Só ouvimos mulheres, porque são elas as que têm as vozes menos levadas em consideração em todos os contextos. E agora temos mais que reverenciar todas essas mulheres pela resistência diária. Minha eterna admiração e solidariedade. Como sempre digo aos que me circundam: É nós por nós. Em tempos de Temer, Trump e Bolsonaro, Mulheres do Passarinho é fôlego, afago e esperança.

Avante!

Rani de Mendonça

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