Kol ha Kavod e L’Chaim!
Como o povo judeu carrega uma grande tragédia em sua história, pretendemos com o MaguenTown celebrar a vida. Não queremos martirizar o leitor com relatos de um passado que tirou...
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Preservando um sotaque forte de quem veio do Leste Europeu e com uma memória privilegiada, Pola Berenstein, 93 anos, não perde a alegria e delicadeza ao contar da sua história, que rendeu a ela um livro homônimo, mesmo quando narra fatos triste que aconteceram na sua juventude. Natural da Bessarábia, atual Moldavia, mas portadora de um passaporte romeno, ela sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, passando por condições subumanas, que exigiram dela morar em uma pocilga por mais de três anos. Arriscou sua vida ao fugir para pedir comida e alimentar toda a sua família. Pola Berenstein é a única imigrante judia ainda viva da cidade do Recife.
Com três filhos, com cinco netos e dois bisnetos, Dona Pola, como é conhecida, hoje mantém um sorriso doce e vive tranquilamente em um bairro da Zona Sul da capital pernambucana, onde lembra os momentos que marcaram a sua história e que conta em entrevista para o MaguenTown:
MaguenTown (MT) – Qual a primeira memória que a senhora tem de quando ainda morava na Europa?
Pola Berenstein (PB) – Lembro muito da minha infância, quando morava no interior, e, Varticautz. Meu pai era comerciante e minha mãe era semi-analfabeta. Ele sempre se preocupou com a educação dos filhos e contratou um professor que morava em uma cidade vizinha para nos ensinar o Iídiche, hebraico, cultura judaica e religião. E meu pai queria tanto que aprendêssemos o Hebraico que falava: “Quem não falar hebraico, quando eu chegar vai ficar de castigo’’. Pouco depois, nos mudamos porque meu pai via os filhos crescendo e não queria que nós ficássemos morando no interior. Queria que nos pudéssemos continuar os estudos. Então, nos mudamos para Lipcani, na Berssarábia, que estava sob o domínio dos Romenos.
MT – Em Lipcani já tinha uma comunidade judaica?
PB – Tinha, eram dez mil judeus, mas moravam em um bairro afastado do centro.
MT – Como foi a chegada do terrorismo nazista na sua cidade?
PB – Não demorou muito. Os romenos invadiram a Rússia, e logo começaram a bombardear. Numa sexta-feira de noite, eu fui ao cinema com um rapaz que era engenheiro. Quando voltei, fui dormir e, durante a noite, minha irmã chegou gritando: “Acorda, acorda! É guerra!”. E eu disse irritada: “Que guerra?! Vai embora que to com sono”. Eu nunca esperava um problema desse. Eu acordei e fomos pra casa do sogro da minha irmã. Então chegou uma ordem dos alemãs de que onde tivesse judeus, era para matar. Mas tivemos sorte. Como não ficávamos no centro, conseguimos escapar. No entanto, não demorou muito e nos acharam. Levaram-nos para uma cidade que se chamava Biliavenitz. Agora éramos muitos, milhares de pessoas. E então, os soldados começaram a matar. Escolheram uma família, que tinham dois meninos. Tocavam violino, era inteligentes. Mataram primeiro os dois filhos, para o pai ver e ficar com raiva. E depois os pais. E nos obrigaram a andar muito. No meio do caminho, minha sobrinha logo morreu de fome. Os olhos abertos. E ela foi colocada numa cova coletiva.
MT – E como a senhora e sua família conseguiram sobreviver à toda aquela caminhada?
PB – Conseguimos sobreviver porque, quando passávamos alguns dias assentados em alguma cidade, eu fugia para pedir comida. Todo mundo ficava com o coração na mão, mas eu nunca fui de desistir facilmente. Como havia muita gente entre nós, era impossível que os soldados dessem por falta exatamente de mim. Eu me metia entre os matos e chegava às casas falando romeno, ucraniano, que sabia falar bem. Tive boa formação, aprendi vários idiomas. Foi a minha sorte. Contava histórias diferentes. Dizia que a casa dos meus pais tinha sido bombardeada. Nunca contei que estava sendo levada pelos nazistas, pois temia a reação do povo.
MT – E como ficavam as condições de saúde das pessoas que os acompanhavam?
PB – Eu era bastante forte. Não peguei nenhuma doença. Mas meu irmão teve problemas no pé. Seu sapato foi desgastando e ele só conseguiu outro de tamanho menor. Todos os dedos do pé dele começaram a ser atingidos e cair. Então nessa noite eu dei meu lugar de dormir pra ele, pois já estamos estabelecidos no local, onde passamos três anos. E do lado de fora tinha um caseiro, e eu pedir: “Por favor, olha eu não tenho lugar onde dormir essa noite, me ajude. Eu não tenho cobertor, nem nada” e ele me disse: “Sai daqui puta!” Eu levantei a cabeça, fui embora e tive que passar a noite toda em pé.
MT – Quais noites marcaram essa época para a senhora?
PB – Lembro que, em um determinado momento, começou a cair neve em Balanovka. E a maioria das pessoas já tinha morrido de tifo ou contraído a doença. Mas eu e a minha família ainda aguentávamos fortes, porque eu fugia, apanhava, mas trazia comida. Então, numa noite, eu e minha irmã decidimos ir falar com o responsável pela kolchotz (pocilga) para que ele nos deixasse dormir numa kantora (sala) que tinha vazia. Naquele momento, das 1.500 pessoas, nós éramos apenas 50. Dissemos a ele: “Olha, por favor, já morreram tanta gente. Só nós sobraram. Ajudae-nos, dá pra a gente essa kantora pra a gente dormir”. E ele disse “tá certo!” E as 50 pessoas dormiram todas no chão.
MT – A senhora chegou a sofrer algum abuso dos alemães?
PB – Eu era muito bonita e os alemães procuravam por mulher e eles pensaram que eu iria ficar com eles. Um dia, soubemos que dois alemães estavam em Balanovka querendo mulheres jovens. E quando eles chegaram, nós já estávamos avisados. Minha mãe e minha irmã me esconderam, colocaram bastante palha de ervilha em cima de mim, para os soldados não me verem. Meu irmão e meu cunhado me fizeram de travesseiro. Eles chegaram e perguntaram por moças fortes, e minha mãe disse que só tinha ela de forte, mas que já não era moça. Eu não sei que milagre se deu, mas eles acreditaram e foram embora. Eu queria muito tossir, mas não podia, tinha medo que eles escutassem. Não sabemos bem, mas achamos que, na época, que eram desertores. Eles estavam armados, desgrenhados, sujos e com a farda desarrumada. Mas isso foi suficiente para todos nós ficarmos a semana toda especulando sobre a visita deles. Assim se passaram três anos.
MT – Porque a senhora acredita que escapou?
PB – Minha sorte foi não ter tido tifo. O tifo pega em pessoas fracas. Quando as pessoas se deitam, o tifo ataca. Eu como era forte, graças a deus não tive tifo. E foi essa a minha sorte. Por isso escapei, mas todo dia fugindo, pedindo comida. Uma vez minha irmã foi comigo e eu consegui porque tinha mais jeito. Quando voltei, encontrei-a chorando porque não tinha conseguido. Ela choramingava porque dizia que preferia morrer no canto dela, pois não tinha jeito. Desde então, decidi que só eu sairia pra pedir comida. E disse a ela que ela cozinhava e eu pedi a comida. Cozinhávamos em um capacete de soldado. E quando um caminhão passava em cima de uma galinha, pegávamos. Não tínhamos dinheiro, pra ir comprar nada.
MT – Como a senhora conseguiu ser libertada?
PB – Depois de três anos e meio, os russos invadiram a Ucrânia. E os romenos foram embora. Eu falava Iídiche, eu falava russo, eu falava ucraniano. Então eles chegaram e nos perguntaram: “Vocês são judeus ou russos?”, e nós ficamos calados. Nós tínhamos muito medo que eles tivessem cominado com os alemães, para falarmos alguma coisa e eles nos matarem. Eles foram embora. Mas depois chegaram mesmo os judeus, falando na minha língua, então nós começamos a acreditar. Eles falaram que podíamos voltar pra casa, falaram que os russos tinham derrotado os alemães. E voltamos para casa a pé. Tudo foi a pé. Ninguém tinha dinheiro depois de três anos e meio.
MT – Como foi a chegada na casa?
PB – Encontramos a casa lá, mas não tínhamos mais nada. Só a casa. Então tivemos que trabalhar. Minha irmã lavava as roupas dos soldados. Eu comecei a trabalhar de uma lanchonete dos soldados russos. Foi então que conheci meu marido. Ele me viu na lanchonete e ouvi quando ele falou com o amigo dele, uma pessoa da minha cidade, ‘que moça bonita’. Então o Moisés me apresentou a ele. Um moço muito distinto, educado e que se chamava Leon Berenstein. Ele era judeu de origem romena. Cabo do exército russo. Começamos a namorar, mas a guerra não havia acabado. Leon deveria voltar para as batalhas finais. E, antes de ele ir, com poucos dias de namoro, decidimos casar. Casamos no dia 15 de julho de 1944, e logo em seguida, ele seguiu viagem com o exército russo.
MT – E como foi que a senhora veio parar aqui no Recife?
PB – Meu marido tinha dois irmãos aqui. E eles nos mandaram um chamado. Mas não foi fácil, não. Tivemos de ficar na França por oito meses. Ficamos na Tchecoslováquia seis meses, com um menino pequeno – meu filho mais velho, Jacob, que nasceu na Romênia. E paramos no Rio de Janeiro antes de desembarcar no Recife. O navio que viemos não era bem confortável, era um navio cargueiro que também fazia transporte de passageiro. Mas foi uma viagem tranquila, de ventos fracos.
MT – E qual a primeira impressão que a senhora teve do Recife assim que chegou aqui?
PB – Naquele tempo era tudo muito bom. Gostei muito do Brasil e não estranhei nada por aqui. Mas o que mais contou naquele momento foi o calor humano. Fui muito bem acolhida pelos parentes e amigos deles, que acabaram sendo meus amigos também.
MT – Como foi o contato da senhora com a Comunidade Judaica do Recife?
PB – Muita gente estava no porto quando cheguei. Aqui fiz muitos amigos que guardo até hoje. O rabino vem me visitar. E também fiquei muito conhecida como ‘gente boa’.
MT – E as dificuldades que a senhora encontrou aqui?
PB – Minha maior dificuldade foi quando meu marido adoeceu. Ele devia dinheiro. E as pessoas vinham me cobrar. E eu falava: “Olha meu marido está entre a vida e a morte, eu tenho três filhos pra criar. Mas eu não vou pegar o dinheiro de ninguém”. E assim foi. Meu marido também tinha dinheiro na praça, e eu não tinha força pra cobrar. Mas com meu jeitinho fui mandando cartas para cobrar e o pessoal foi chegando. Quando meu marido faleceu, no dia seguinte, fui à loja porque tinha muitas obrigações. Cheguei, fiz meus pagamentos direitinho. E já faz 37 anos que isso aconteceu.
MT – Mesmo depois de ter passado por tantas culturas e adversidades, quais os valores que a senhora encontra hoje na sua família, nos seus filhos e nos seus netos que a senhora também via nos seus pais?
PB – Muito respeito. Eles me tratam com muito respeito. Tenho 93 anos, hoje mesmo já me ligaram: “Mamãe, eu venho tomar café”, “Mamãe, eu venho almoçar”. Eles tem o maior respeito comigo e me ajudam também muito. Nunca tive briga, nem nada. Eles são ótimos. Meu filho mais velho é sempre muito brincalhão. E minha natureza é assim, toda a vida eu vivi bem com todo mundo.