Com a revogação do decreto que proibia a prática do futebol feminino, Pernambuco também ganhou adeptas. Ao analisar as edições do Diario de Pernambuco da década de 1980, nomes como o Coisinhas do Pai e as Panteras passam a ser frequentemente mencionados pelo jornal. É interessante citar que esse jornal reforçava o desenvolvimento da categoria em suas matérias.
No dia 12 de fevereiro de 1980, o DP publica uma matéria com a seguinte manchete: Futebol feminino em Pernambuco pretende durar e ter sucesso. O texto refere-se a uma entrevista concedida pela idealizadora do Coisinhas do Pai, até então considerado primeiro time de futebol de mulheres em Pernambuco, Maria do Carmo Correia da Nóbrega. Confirmado por Maria do Carmo, o time fundado por ela foi criado no bairro de Boa Viagem, assim como o clube As Panteras. A fundadora do Coisinhas do Pai, na época com 18 anos, nasceu no bairro de Água Fria, na Zona Norte do Recife, e relatou ser torcedora do Sport.
“Estávamos assistindo a um jogo na área de lazer do Pina, onde os rapazes jogavam vestidos de mulher. Eu e algumas amigas. Uns colegas foram logo insinuando que a gente devia também jogar futebol. A ideia pegou. Reuni as meninas e disse que toparia levá-la à frente. Arrumamos várias adeptas, todas amigas, moças lá do Pina. Eu e Norminha (capitã de outra equipe) formamos dois times e começamos a treinar na praia. De início, uma empolgação. Depois, o pessoal foi tomando consciência da coisa”, afirma Maria do Carmo.
Semelhante aos problemas atuais, a falta de diálogo entre federações, clubes e jogadoras impedia o progessivo desenvolvimento da categoria. Como comentado anteriormente, a tentativa de cercear as atividades futebolísticas das mulheres culminou no enfraquecimento da modalidade.
Na mesma entrevista concedida ao Diario, na edição publicada no dia 12 de fevereiro de 1980, na página 20 do caderno de Esportes, Maria do Carmo Correia da Nóbrega, do Coisinhas do Pai, narra um caso de censura por parte da Federação Pernambucana de Futebol, quando a FPF tenta impedir a disputa entre elas e As Panteras, em um jogo preliminar à partida do Sport contra a seleção da Romênia, que marcaria o retorno dos jogos na Ilha do Retiro:
“O incentivo com o futebol feminino vem sendo muito grande. Os moradores do Pina, parentes e amigos, os moradores ajudam no treinamento, ensinando os dribles e passes etc. Para a surpresa nossa, a dificuldade é com a Federação. Não sei por que isso aconteceu. Soubemos através dos jornais, no dia seguinte, que a FPF não queria que o jogo fosse realizado. Queremos deixar bem claro que não estamos jogando para angariar prêmios e sim para motivar a participar do esporte das multidões, um incentivo a mais para o futebol brasileiro.”
A edição do dia 1º de março, noticia a procura dos organizadores da Liga Campinense de Esportes, da cidade de Campina Grande, Paraíba, pela participação dos times recifenses Coisinha do Pai e As Panteras, para a participação nos jogos do campeonato. Antes da partida interestadual, o Coisinhas do Pai enfrenta as Arapiracas – time formado no Cabo de Santo Agostinho –, no dia 30 de março de 1980.
Na reportagem do DP, o comentário: “Isso é uma prova de que o futebol feminino não vai parar, muito pelo contrário, sua tendência é caminhar em frente depois daquele sucesso de que se revestiu sua primeira exibição na Ilha do Retiro, quando um bom público teve a oportunidade de assistir aos verdadeiros pendores das garotas na arte de manejar o balão de couro, coisa até então desconhecida e que se constituía num privilégio dos homens”.
Fofoletes
O ano de 1980 também foi destaque para o Sport Clube do Recife, que estreou o seu time feminino, as Fofoletes, no dia 13 de maio, quando jogaram com outra equipe feminina também formada por atletas do clube. A disputa entre Coração de Leão e Fofoletes foi o aquecimento para o jogo do dia 15 de maio, data do primeiro confronto feminino do clássico dos clássicos, entre as Timbusitas (Náutico) e as Fofoletes (Sport). A partida das mulheres também antecedeu o jogo da equipe masculina.

Foto: Narciso Lins | Acervo Museu da Cidade do Recife
Em junho de 1980, o Coisinha do Pai estabeleceu o regulamento disciplinar interno. Este seria um dos primeiros passos em busca de uma profissionalização da categoria em Pernambuco. Entre as determinações, estavam a proibição de ingerir bebidas alcoólicas em dias de treino, jogos ou excursões, bem como a proibição do uso do cigarro durante os exercícios. Para as atletas, também era determinado comunicar ao massagista, preparador físico ou técnico qualquer contusão, ferimento ou problema físico. Outro ponto que chama a atenção é o primor pelo comprometimento das jogadoras. O regulamento também estabelecia que, nos casos de indisciplina, ferindo o regulamento, haveria pena de advertência, para o primeiro caso; na reincidência, suspensão; e expulsão, no terceiro caso.
O futebol de mulheres em Pernambuco, na década de 1980, passou a ser regionalizado e divulgado pelos próprios clubes. Ainda remetendo ao Sport, durante a celebração dos seus 75 anos, o clube organizou uma caravana que levou as jogadoras do Coração de Leão para realizar uma partida que antecedeu o jogo do time principal contra o Central, em Caruaru. Este seria o primeiro jogo feminino na cidade do Agreste.
Apesar do comprometimento das jogadoras, a situação das atletas não era diferente da história contada por nós até hoje. Para realizar o sonho de jogar futebol, as mulheres dividiam o tempo com outras atividades, como estudo ou trabalho. O time Coisinhas do Pai precisou diminuir os dias de treinamento, passando de dois para um único momento, aos domingos. Maria do Carmo também detalhou que, após sete meses de criação, o time havia jogado nove vezes, perdendo apenas uma partida contra As Panteras, que foi extinto pouco tempo depois. Contudo, o cenário estadual não impediu que novas equipes fossem firmadas, muitas delas no interior do Estado. Essas equipes raramente eram mencionadas pela mídia local.
O Coisinha do Pai difere de outros times da época. Empresariada por um gaúcho, Gilberto Araújo, a equipe ficou conhecida nacionalmente, e buscou competições de alto nível, com times femininos tradicionais do Sul e Sudeste do país. Gilberto chegou a mencionar a criação de uma sede para o time. Entre os problemas enfrentados pela equipe estava, mais uma vez, o acordo financeiro.
“Trabalhamos com patrocinadores e não realizamos jogos por dinheiro porque, conforme a lei, já que somos amadores, não podemos receber. O que realmente pretendemos é conseguir mais jogos, para um maior intercâmbio do futebol feminino”, afirmou Araújo ao DP, no dia 13 de julho de 1980.
O treinador do Coisinhas do Pai, Moisés Correa Neto, também defendeu o desenvolvimento da categoria abertamente em suas declarações para o Diario de Pernambuco, e citou a dificuldade de encontrar outras equipes de mulheres no Estado.
“Não entendo por que tanta dificuldade em encontrarmos, aqui, times de futebol feminino. Nos Estados Unidos, por exemplo, existem mais de trezentos times de futebol feminino. […] E afinal, o futebol nem é um esporte bruto e nem perigoso. Quando todos os times ficarem num esquema de trabalho sólido, faremos a profissionalização do futebol feminino. Antigamente fazíamos uma espécie de show no intervalo dos jogos de futebol profissional, mas suspendi tudo porque queremos participações reais, como nas preliminares. Não quero o ‘Coisinha do Pai’ como uma simples distração para os intervalos”, afirmou o técnico.
Congresso de Futebol Feminino
À frente de mais uma movimentação para regularizar o futebol feminino em Pernambuco, o time Coisinha do Pai liderou, através de Maria do Carmo e da secretária-executiva, Ivani Barbosa da Silva, uma comissão para organizar o I Congresso de Futebol Feminino do Brasil, de acordo com o Diario, mantendo contato com autoridades e entidades esportivas, com o objetivo de adquirir apoio para a categoria. As conversas aconteceram, inicialmente, com a Prefeitura do Recife e com a presidência do extinto Banco do Estado de Pernambuco (Bandepe). O evento aconteceu no Centro de Convenções de Pernambuco, durante os dias 15 e 16 de dezembro de 1980.
O Congresso tinha como meta a organização de uma estrutura administrativa e funcional para o futebol feminino local, além de discutir a portaria que proibia a prática do desporto para as mulheres, e buscar o estabelecimento de critérios para a prática do futebol feminino. O encontro também pretendia formar uma entidade que congregasse, legalmente, todas as equipes, sendo assim, a criação de uma federação voltada para o futebol de mulheres.
“Já existem mais de 25 equipes femininas praticando o futebol em nosso Estado, isso sem falar naquelas do interior que não conhecemos. Mas, por incrível que pareça, a prática do futebol feminino ainda é uma coisa clandestina, ilegal, tendo em vista uma portaria que proíbe essa atividade para mulheres”, reforça Maria do Carmo, fundadora do Coisinha do Pai.
As organizadoras também pretendiam formalizar e criar o primeiro Campeonato de Futebol Feminino de Pernambuco, a exemplo do que já acontecia na categoria masculina.
Na tentativa de obter recursos para a realização do evento, o Coisinhas do Pai divulgou uma carta aberta na edição do DP, publicado no dia 24 de outubro de 1980:
“Nosso time foi fundado em 01.01.1980, tendo participado de várias partidas de futebol com a seguinte denominação ‘Coisinha do Pai’. Porém, até a presente data, o órgão responsável pela legalização de time de futebol, aqui em Pernambuco, não apresentou uma solução para times femininos amadores ou profissionais. Assim sendo, a finalidade do Coisinha do Pai é justamente participar de um congresso a ser realizado no Centro de Convenções, nesta cidade, no período de 15 a 20.12.80, onde serão debatidos e reivindicados os nossos direitos de legalização, mas para isso necessitamos de colaboração”.
O encontro teve grande repercussão, atraindo a atenção de treinadores de futebol profissional, técnicos amadores, dirigentes de agremiações, advogados, médicos, psicólogos, sociólogos, além de presidentes de agremiações femininas do Norte e Nordeste e até mesmo especialistas em ginecologia. Marco Maciel, governador do Estado, e Gustavo Krause, prefeito do Recife, também informaram que estariam presentes no Congresso.
Ao todo, esperava-se mais de dez agremiações femininas criadas em Pernambuco. Entre os times locais, confirmaram presença o Coisinhas do Pai, Divinas e Maravilhosas, Realce, Timbuzetes e Garotas do Parque. Como noticiou o DP, na época em que o evento foi realizado, 25 equipes de futebol feminino existiam no Estado, sendo 15 delas localizadas no Recife.
Apesar da ampla divulgação e da promessa de participação dos mais de trinta congressistas no evento, na manhã do dia 16 de dezembro apenas dez pessoas compareceram ao local. Não houve representação do Governo do Estado e nem da Prefeitura do Recife, que também não comunicaram o motivo da ausência e tampouco enviaram representantes.
Entre os poucos presentes, o advogado, conselheiro do Santa Cruz e membro do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Pernambucana de Futebol, Gil Teobaldo, se disponibilizou para defender as atletas durante o processo de luta pela legalização da categoria.
Após o término do lacônico congresso, Maria do Carmo criticou abertamente o Sport Clube do Recife e afirmou que time “usa as equipes femininas, se promove e não dá apoio. Pelo contrário: quando surge qualquer coisa, diz que a equipe é da torcida e invade o campo. Está provado que levamos o maior público aos estádios e que ajudamos no desenvolvimento do futebol. Mas o Sport só quer promoção. Mesmo negativa. Agora mesmo estou falando dele. Mesmo ruim, é promoção”, afirmou a presidente e fundadora do Coisinha do Pai.
Impedimento pelo Conselho Nacional de Desportos
Mesmo após o decreto que proibia a atuação do futebol feminino ser revogado, o impedimento ainda seguia em alguns estados do Brasil. Pernambuco foi um deles. No dia 21 de outubro de 1980, o Coração de Leão, time feminino do Sport, organizado pela torcida Bafo do Leão, informou que recebeu um comunicado do Conselho Nacional de Desportos (CND). De acordo com o presidente José Tavares de Moura, um ofício foi enviado ao clube alegando que a equipe estava realizando amistosos com entrada paga, na época, proibido.
“O time não é dirigido pelo nosso clube e, sim, pela torcida. Não joga os 90 minutos regularmente e, sim, nos intervalos dos jogos oficiais ou amistosos. Nunca se apresentou exigindo dinheiro. A CBF está querendo que seja extinto o futebol feminino e vamos consultar o nosso Departamento Jurídico para saber que providências devemos tomar”, afirmou, à época, José Tavares de Moura, presidente do Sport Clube do Recife.
Após a promessa de acionar o jurídico, Tavares convocou uma reunião com a torcida Bafo do Leão no dia seguinte para discutirem o ocorrido. De acordo com a edição do Diario de Pernambuco do dia, o CND enviou ofícios à Federação Pernambucana de Futebol para proibir a atuação das jogadoras em Pernambuco. Com isso, o Primeiro Campeonato de Futebol Feminino, organizado pela Prefeitura do Recife, seria suspenso, voltando a ser realizado apenas no dia 7 de fevereiro de 1981. A equipe vencedora da competição foi a Coração de Leão.
Apesar da suspensão temporária do torneio, a fundadora e presidente do Coisinha do Pai, Maria do Carmo, manteve o diálogo entre as entidades esportivas regionais. No dia 12 de novembro de 1980, a Federação Pernambucana de Desportos Amadores anunciou o seu apoio à categoria na luta pela legalização.