Foto: Cartaz de um dos primeiros jogos de futebol feminino, 1895/Fifa Museum Collection
Cartaz de um dos primeiros jogos
de futebol feminino, 1895. Foto: Fifa Museum Collection

Ainda é impreciso datar quando o futebol feminino começou a ser praticado no Brasil, mas, decerto, práticas semelhantes aos movimentos futebolísticos já eram realizadas por mulheres desde a década de 1920, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Como explica a historiadora e pesquisadora Aira Fernandes Bonfim, na dissertação Football feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos (2019), as meninas passaram a experimentar os chutes a gol, brincadeiras de correr e até a utilização dos uniformes dos seus clubes de associações durante os encontros sociais esportivos que reuniam a sociedade para assistir partidas de futebol praticados por homens. Durante o período de descoberta da atividade esportiva no Brasil, os primeiros jogos realizados entre mulheres já aconteciam no continente europeu, na transição do século XIX para o século XX, especialmente no Reino Unido, França e Espanha.

Partida de futebol feminino. França, início do século XX. Foto: Acervo Fémina Sport/Arquivo Museu do Futebol
Partida de futebol feminino. França, início do século XX. Foto: Acervo Fémina Sport/Arquivo Museu do Futebol
Disputa entre as equipes do Fémina Sport e CASG Marselha, no início do século XX
Foto: Acervo Museu do Futebol | Coleção Fémina Sport
Meninas praticam futebol nos Estados Unidos. Início do século XX.
Foto: Coleção National Photo Company | Acervo Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos

Antes mesmo dos primeiros passos rumo ao contato com a bola, a presença feminina nos locais onde a prática esportiva era desenvolvida foi vista como elemento secundário. As moças da época participavam do enredo futebolístico como torcedoras e acompanhantes, que “chamavam atenção pelos seus atributos físicos”, como divulgavam os jornais daquele período. Para além da beleza, às mulheres era exigido – para associar-se ao clube – uma autorização estatutária dos membros mais antigos, além de condições financeiras que pudessem quitar as mensalidades. Dessa forma, entre homens e mulheres, a prática do esporte se restringiria à elite.

Já na década de 1930, o jornal carioca Correio da Manhã passou a publicar o “Football Feminino” como atração do circo dos Irmãos Queirolo. Durante as performances, as atrizes utilizavam os uniformes dos clubes localizados nas regiões onde as apresentações aconteciam.

Foto: Museu do Futebol/Arquivo
Foto: Museu do Futebol/Arquivo
Bailarinas do Circo Irmãos Queirolo na década de 1930. Foto: Pedro Peressin/Coleção Sandra Köche/Arquivo Museu do Futebol
Bailarinas do Circo Irmãos Queirolo na década de 1930.
Foto: Pedro Peressin/Coleção Sandra Köche/Arquivo Museu do Futebol
Atrizes das famílias circenses Queirolo e Seyssel em Minas Gerais, 1926. Em pé, da esquerda para a direita: Leontina Nogueira, não reconhecida, Vitória Argentina Seyssel, Olinda Seyssel e não reconhecida. No chão: não reconhecida, Emma Seyssel e Benedita, esposa do palhaço Piolim
Foto:  Ayelson Pinto | Coleção Piolin | Acevo Centro de Memória do Circo – SMS – PMS

Como bem lembra Aira Bonfim, na segunda metade do século XX, o circo atingiu o seu ápice e tornou-se uma das manifestações artísticas mais importantes do Brasil. Outro ponto que contribuiu para o reconhecimento do futebol de mulheres, ainda que de forma amadora, foi a expansão do circo pelas diversas regiões do Brasil. Após as apresentações, jornais de todo o país passaram a publicar matérias sobre a participação das mulheres nos espetáculos circenses. 

Com a popularização das apresentações das mulheres no futebol através do circo, os jornais passaram a noticiar tais performances, que chamavam a atenção do público e, principalmente, dos homens. É necessário, sobretudo, afirmar que tais matérias jornalísticas nem sempre falavam sobre o futebol feminino de forma positiva, contribuindo, assim, com o incentivo para a criação do decreto que proibiu a prática esportiva em 1941.

Proibido para mulheres

A tentativa de coibir a prática esportiva pelas mulheres foi fundamentada em um contexto patriarcal e sexista. Era temido que o sucesso do futebol de mulheres pudesse minimizar as diferenças construídas pela sociedade e fosse capaz de desestruturar a ideia do “sexo frágil”. Ademais, apesar da participação das mulheres nos eventos esportivos, o receio da “desmoralização” feminina frente à exibição dos corpos cerceavam as famílias, especialmente aquelas que faziam parte da elite. 

O grande espanto e o escândalo galopante, porém, iria ocorrer, como se podia esperar, com a mudança dos hábitos e trajes femininos. Num mundo até então polarizado quase exclusivamente em torno da figura masculina, as moças aderiram, com frenético entusiasmo, aos hábitos modernos e desportivos, deliciadas com os ares de independência e voluntariedade que eles conotavam, desencadeando assim uma comoção que atravessou a década. Os tecidos leves, transparentes e colantes; a renúncia aos adereços, enchimentos, agregados de roupas brancas, perucas, armações e anquinhas; o rosto ao natural, a cabeça descoberta e os cabelos cortados extremamente curtos, quase raspados na nuca, davam às meninas uma intolerável feição masculina, agressiva, aventureira, selvagem (Sevcenko, 1992, p.49-50, apud Aira, 2019).

Nesse contexto repressivo, foi criado o artigo 54 do Decreto-Lei número 3.199, assinado por Getúlio Vargas, na época presidente do Brasil, no dia 14 de abril de 1941. O documento determinava que Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”. Na prática, os fatores alegados para a intervenção foram  muitos. Entre eles, a afirmação do escritor José Fuzeira, em maio de 1940, informando a Getúlio que a mulher “não poderia praticar esse esporte violento sem afetar, seriamente, o equilíbrio psicológico das funções orgânicas, devido à natureza que a dispôs a ser mãe”.

Imagem: Museu do Futebol/Arquivo
Imagem: Museu do Futebol/Arquivo

O apelo pela proibição era meramente sexista, visto que os homens não pretendiam dividir funções que fossem compatíveis com as mulheres. A desautorização por parte do Governo e do Conselho Nacional de Desportos perdurou durante 38 anos e, em 1965,  período inicial da ditadura militar – um dos mais rigorosos, quando nos referimos à proibição das atividades esportivas praticadas por mulheres – o decreto-lei é publicado novamente. Desta vez, com novas censuras esportivas para as mulheres. Além do futebol, a participação feminina também foi restringida no rugby, polo aquático e halterofilismo. Nesse período, as mulheres chegaram a ser presas por descumprir tal ordem.

É importante ressaltar que, mesmo com o decreto em exercício, o Estado não foi capaz de conter as atividades futebolísticas femininas, que ocupavam as periferias e os campos de várzea. Em O Football Feminino nos Subúrbios (2019), Aira Fernandes Bonfim informa que:

O Estado desempenhou um papel cada vez mais ativo na tentativa de redefinir a categorização dos sistemas de gêneros, definindo o que era adequado para homens e mulheres, meninos e meninas. Currículos educacionais, oportunidades de empregos, responsabilidades familiares, comportamento sexual e traços de caráter não passaram incólumes desses enquadramentos (Bonfim,  2019, p.15).

Apesar da realização clandestina do futebol feminino, as interdições impossibilitaram o investimento dos clubes em políticas de inclusão das mulheres na modalidade. Esse processo só será transformado no final da década de 1970, quando o decreto publicado por Vargas é enfraquecido e, posteriormente, em 1979, revogado. Apesar da ordem ser dissolvida, a liberação do esporte para mulheres não aconteceu de forma imediata, como veremos neste site.