
Em 1988, o primeiro campeonato mundial de futebol feminino foi anunciado pela Fifa. Ao contrário do que o noticiário e o próprio presidente da Federação, João Havelange, vinham divulgando, a competição de caráter experimental aconteceu na China, e contou com a participação de 12 países: Brasil, Estados Unidos, Canadá, Costa do Marfim, Austrália, Japão, Tailândia, Tchecoslováquia, Noruega, Suécia, Holanda e China. O torneio foi um teste para a realização de um futuro Campeonato Mundial, e ocorreu na China durante os dias 1º e 12 de junho.
As jogadoras escolhidas para representar a seleção brasileira atuavam, principalmente, nos times do Radar (RJ) e do Juventus (SP). O populismo e a qualidade do Radar permitiram que o time participasse de competições em três continentes, atuando contra as seleções dos Estados Unidos, Argentina, Itália, China, Alemanha, Espanha, México e Portugal, por exemplo, totalizando 44 partidas internacionais, com 39 vitórias, dois empates e apenas três derrotas.
Com os resultados obtidos pelo time carioca, o Brasil chegava na competição com boa posição entre as favoritas.
Aqui também faz-se necessário destacar que a seleção brasileira disputava com equipes que obtinham renda e investimentos nos seus respectivos países. Era o caso dos Estados Unidos, que, de acordo com o Diario de Pernambuco, recebiam na época o equivalente a 900 mil cruzeiros de renda mensal, e da seleção italiana, com cerca de 50 mil cruzeiros, além de uma extensa comissão técnica e apoio para preparação física das atletas.

Acervo Museu do Futebol | Coleção Márcia Honório
Na contramão do desenvolvimento da categoria em parâmetros internacionais, as jogadoras brasileiras pouco receberam apoio da CBF durante a participação na competição. As esportistas não receberam sequer um uniforme específico, e disputaram o campeonato com a sobra das roupas da equipe masculina. Mesmo com o escasso apoio, a seleção brasileira conquistou o bronze nos pênaltis, vencendo as anfitriãs chinesas. As italianas venceram o Mundial na disputa com a seleção dos Estados Unidos.
Confira a escalação das jogadoras para o torneio:
https://museudofutebol.org.br/crfb/acervo/700468/
Foi preciso esperar 61 anos depois da primeira Copa do Mundo de Futebol ser estreada pelos homens para que as mulheres pudessem participar da competição. Enquanto o mundial masculino foi reconhecido oficialmente pela Fifa em 1930, a modalidade feminina só conseguiu que o torneio fosse realizado pelas mulheres em 1991.
Após o primeiro torneio mundial de caráter experimental ser concluído na China naquele 1988, a Copa do Mundo também foi realizada no país e contou com a participação de 12 países, sendo o Brasil o único representante da América do Sul.
Confira aqui a escalação do time brasileiro.
Ao contrário dos outros países que disputavam a competição, o investimento no futebol feminino brasileiro ainda era insuficiente. Para a Copa, a seleção brasileira teve apenas um mês de preparação e caiu no grupo com seleções desenvolvidas como Estados Unidos e Suécia. A estreia não foi empolgante, mas o time conseguiu a vitória por 1×0 contra o Japão. O gol de Elane foi o primeiro da competição. Em seguida, o Brasil encarou os Estados Unidos, perdendo por 5×0, e as suecas, que também derrotaram a seleção canarinha por 2×0. Com os resultados, o Brasil não avançou para a segunda fase.
Naquele ano, a seleção dos Estados Unidos conquistou o torneio em uma partida disputada contra a Noruega. O placar foi de 2×1, em um jogo assistido por cerca de 63 mil pessoas, no Tianhe Stadium, em Guangzhou. As estadunidenses carregaram o título de primeira seleção a vencer uma Copa do Mundo de Futebol Feminino.
Olimpíadas
O futebol faz parte do programa olímpico desde 1900, quando o evento foi realizado na França. Contudo, a modalidade permitia apenas a disputa entre homens. A mudança aconteceu após uma reunião da Federação Internacional de Futebol (Fifa) no principado de Mônaco, em 1993, quando foi decidido pela inclusão do futebol feminino na disputa a partir da próxima edição, que aconteceria em 1996, na cidade de Atlanta, nos Estados Unidos. Quando a participação do futebol de mulheres nos Jogos Olímpicos foi anunciada, duas edições da Copa do Mundo já haviam acontecido, nos anos de 1991 e 1995.
Ao todo, oito países participaram da competição, que foram divididos em dois grupos formados por quatro equipes cada. No E estavam a China (sede da primeira Copa do Mundo Fifa em 1991), Estados Unidos (campeão mundial em 1991), Suécia e Dinamarca. Já o Brasil estava no grupo F, com Alemanha (vice-campeã mundial em 1995), Noruega (campeã mundial em 1995) e Japão.
O time do Brasil tinha como formação da equipe-base naqueles jogos: a capitã Sissi, Meg; Nenê, Tânia Maranhão, Elane e Fanta; Márcia Taffarel e Formiga; Pretinha, Roseli e Kátia Cilene. Suzy, Marisa, Didi, Nildinha, Leda Maria, Marileia dos Santos (que tinha o apelido de Michael Jackson) e Sônia completavam o elenco do treinador Zé Duarte.
A falta de investimento e preparação refletiu no desempenho do Brasil na Copa do Mundo de 1995, quando a seleção ocupou a 9ª colocação com vitória sobre a Suécia por 1×0, e seguidas derrotas para o Japão e para a Alemanha. Contudo, a equipe olímpica contava com modificações na comissão técnica.
No primeiro jogo da competição, o Brasil ficou no empate com as norueguesas, placar de 2×2. Já na segunda partida, as canarinhas venceram o Japão por 2×0. Com os resultados, a seleção brasileira estava classificada para as semifinais. A disputa aconteceu contra as chinesas, que levaram a melhor. Em seguida, o confronto foi novamente com a seleção da Noruega. A seleção europeia levou a melhor, vencendo o Brasil por 2×0. A seleção brasileira foi eliminada dos Jogos Olímpicos de Atlanta, ficando em quarto lugar. Conheça outras curiosidades sobre a primeira participação do futebol feminino nos Jogos clicando aqui.
Medalha do Brasil na Copa do Mundo Fifa
A terceira edição da Copa do Mundo de Futebol Feminino aconteceu em 1999, nos Estados Unidos. A competição contava com a participação de 16 países – quatro a mais que as últimas duas competições –, entre eles, o Brasil.
O time brasileiro contava com a escalação de Maravilha, Nenê, Tânia Maranhão, Juliana Cabral, Cidinha Maycon, Formiga, Kátia Cilene, Sissi, Suzana, Andreia, Fanta, Grazielle, Marisa, Raque, Pretinha, Priscila, Deva e Valéria.
A seleção canarinha foi sorteada para o grupo da Itália, Alemanha e México, e se classificou na primeira colocação com sete pontos: duas vitórias e um empate contra a Alemanha, uma das equipes mais fortes da Copa.
Com o empate, a seleção brasileira avançou para as quartas de final, na qual enfrentou a Nigéria em uma partida histórica. O jogo estava empatado, com um placar de 3×3. A reviravolta aconteceu na prorrogação, quando Sissi acertou um chute de falta e deu a vitória para o Brasil. O gol da Imperatriz é considerado até hoje um dos momentos mais emblemáticos desde a criação da competição.

A vitória levou a seleção brasileira para as semifinais, onde o time enfrentou os Estados Unidos. A equipe nacional perdeu para as estadunidenses por um placar de 2×0. A disputa pela terceira colocação ficou entre Brasil e Noruega. A partida terminou empatada em 0x0, levando a decisão para os pênaltis. A seleção brasileira venceu as europeias por 4×3 e conquistou o bronze, primeira medalha do Brasil na Copa do Mundo Feminina.

Posteriormente, os Estados Unidos venceram o campeonato, sediado no país. A conquista também foi decidida nos pênaltis contra as chinesas, com um placar de 4×3 para as norte-americanas. Uma das fotos mais memoráveis da competição tem como protagonista a atacante Brandi Chastain, camisa 6 da seleção vitoriosa. A jogadora, após acertar a cobrança decisiva, tirou a camisa e caiu no gramado, envolta à emoção do momento.

Foto: Robert Beck | Sports Illustrated | Getty Images
2004 | Jogos de Atenas
A edição dos jogos olímpicos de Atenas, em 2004, foi o evento esportivo que reuniu aquela que seria a seleção feminina mais vitoriosa do Brasil. O time contava com grandes nomes do esporte nacional como Pretinha, Marta, Formiga e Cristiane (que se tornaria, posteriormente, a maior artilheira do futebol feminino na história dos Jogos Olímpicos).
Com uma goleada por 7×0 sobre as gregas e uma goleada por 5×0 nas mexicanas, as guerreiras do Brasil chegavam às semifinais e, após a vitória contra a Suécia, já tinham uma medalha garantida. A final foi disputada com uma seleção conhecida das brasileiras: os Estados Unidos, que levou o ouro.
2009 | Primeira edição da Libertadores Feminina
Com o sucesso na Copa do Brasil, o time feminino do Santos, composto -entre tantas estrelas- por Marta e Cristiane, venceu a competição e conquistou a torcida. A vitória pressionou a Conmebol para realizar a Libertadores da América que, na ordem do futebol masculino, seria o próximo campeonato a ser disputado.
Em 2009, a Conmebol realizou a primeira edição da Libertadores Feminina. A competição contou com dez times, uma de cada país membro da liga. A equipe que representou o Brasil foi o Santos, que tinha um time constituído por estrelas da modalidade, incluindo as jogadoras Marta e Cristiane, que também já defendiam a seleção brasileira.
As Sereias da Vila chegaram à final da competição, que foi disputada na Vila Belmiro, contra a Universidad Autónoma, do Paraguai. As brasileiras bateram o time paraguaio por 9×0 e tornaram-se as primeiras campeãs da Libertadores Feminina. Cristiane foi a artilheira da competição, com 15 gols marcados e Marta, naquele ano, foi considerada pela quarta vez a melhor jogadora do mundo, ao lado de Messi.
O êxito da equipe e o sucesso na parceria entre as jogadoras levou o público de 14.186 pessoas ao estádio Vila Belmiro. Apesar de todas as conquistas, o Santos anunciou o fim da equipe feminina em 2011. O time só voltou a investir na modalidade quatro anos depois.

Foto: RICARDO SAIBUN/Gazeta Press
2014 | Criação da seleção permanente
Em 2014, durante a Copa do Mundo masculina no Brasil, a CBF anunciou a criação da seleção permanente de futebol feminino, onde uma única equipe permaneceria em treinamento ininterrupto focando no Mundial de 2015, no Canadá; Jogos Pan Americanos, em Toronto 2015, e Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro. O programa funciona como um clube, onde as jogadoras trabalham com contratos e salários pagos pela Confederação Brasileira de Futebol.
Através da seleção permanente, as atletas convocadas recebem um treinamento de forma contínua na Granja Comary e nos Centro de Treinamento de Itu. No caso das jogadoras que atuam nos clubes do exterior, elas continuam sendo convocadas e fazem parte do time sempre que disponibilizadas. Cerca de 26 mulheres treinaram juntas desde final de janeiro de 2015 sob o comando do técnico Vadão. O trabalho e o investimento na seleção feminina resultou na vitória dos Jogos Pan Americanos de 2015.

2019 | Copa do Mundo Feminina da França
Este texto não poderia ser encerrado sem falar dela: a Copa do Mundo Feminina de 2019, realizada na França. O campeonato foi, sem dúvidas, a virada de chave para um novo rumo da categoria em escala mundial, que foi marcado por campanhas e protestos das jogadoras por igualdade de gênero, de investimento e de premiação no esporte.
Antes mesmo do início da competição, a Copa já garantiu a maior visibilidade da história do torneio feminino. O recorde de ingressos vendidos foi batido ainda em abril (ao todo mais de um milhão de ingressos vendidos). As entradas para a final, semifinais e a partida de estreia da equipe francesa se esgotaram em menos de 48 horas.
A Copa do Mundo Feminina de 2019 foi a primeira edição do campeonato que contou com a transmissão de todos os jogos do Brasil em TV aberta, pela rede Globo, maior emissora do país. Antes as transmissões das partidas pela Globo aconteciam através do canal fechado Sportv. A Band também reproduziu os jogos na TV aberta e na Band Sports. E, antes mesmo de concluir o texto, já vou dar um spoiler: esta foi a edição mais vista da história do campeonato, com mais de 1 bilhão de visualizações. Inclusive, quatro jogos da seleção brasileira estiveram entre as oito partidas mais assistidas da competição. Com o alcance divulgado pela FIFA, a discussão de que “ninguém quer ver mulher jogando futebol” pode, finalmente, ser encerrada.
A edição trouxe grande atenção do público no mundo todo, como o evento, de fato, se propõe a fazer, e foi palco para diversas manifestações entre as participantes. As jogadoras fortaleceram o movimento pela igualdade de gênero, que resultou em um posicionamento por parte dos patrocinadores diante das mudanças, e anunciassem novos projetos voltados para o futebol feminino. A Nike, patrocinadora da seleção brasileira, desenhou pela primeira vez um uniforme exclusivo para a equipe e estampou o selo “Mulheres Guerreiras do Brasil”. Além da nova roupagem, a empresa de materiais esportivos divulgou a nova propaganda voltada para o evento, que mostrava que as meninas que sonham em jogar futebol não devem mudar o seu sonho. A vitória da seleção dos Estados Unidos também resultou em uma nova propaganda da marca, voltada para o empoderamento das mulheres no futebol.
Já a Adidas decidiu igualar o valor das premiações concedidas aos times masculinos que a empresa patrocina. Em maio, a Guaraná Antarctica -patrocinadora histórica da seleção brasileira- convocou outras marcas, através da campanha “É coisa nossa”, a investirem no futebol feminino. Outras marcas como Gol, Nescau e O Boticário também decidiram apoiar o movimento e passaram a contratar jogadoras para os comerciais.
Apesar da repercussão e de muitas campanhas feitas, seja pelo marketing das empresas, seja pela cobrança do público e das atletas, um ponto importante não mudou: a diferença da premiação paga pela FIFA à seleção vencedora do torneio masculino em comparação ao feminino.
Na Copa do Mundo masculina, realizada na Rússia em 2018, a equipe francesa -vencedora da edição- recebeu 38 milhões de dólares como premiação. O repasse total da FIFA para as 32 equipes participantes foi de US$ 400 milhões. Já na edição feminina da competição, a FIFA designou apenas US$ 30 milhões, que foi dividido entre 24 seleções. Sendo assim, o valor total da competição pago pela Federação foi menor do que o prêmio da seleção francesa.
A luta pela equidade salarial na modalidade fez com que o futebol de mulheres enfrentasse um novo momento na sua história. A norueguesa Ada Hegerberg, vencedora da Bola de Ouro na época do torneio, iniciou os protestos e comunicou que não iria participar do mundial. A decisão foi tomada após a jogadora afirmar que não iria participar da Copa do Mundo se as condições fornecidas pelo país à categoria não mudassem e fossem equivalentes à estrutura dada ao futebol masculino. Ela se referia não só aos pagamentos igualitários, mas à infraestrutura dos clubes, como os alojamentos, por exemplo. Após o protesto, a federação norueguesa de futebol e o sindicato de jogadores anunciaram um acordo de pagamentos iguais entre homens e mulheres.
O coro de Ada foi entoado pela rainha Marta -que utilizou uma chuteira preta e sem patrocínios em apoio à campanha Go Equal, que luta pela igualdade de gênero- por toda uma seleção: a dos Estados Unidos. Durante toda a competição, as jogadoras da equipe cobraram das federações a igualdade entre as categorias. Megan Rapinoe, ativista dentro e fora dos campos, tornou-se uma das principais representantes na luta pelos direitos das atletas do país. Inclusive, Rapinoe foi uma das atletas (entre elas Hope Solo e Alex Morgan) que coordenou o processo movido pelas jogadoras contra a federação do país por discriminação entre as categorias masculina e feminina. No dia 22 de fevereiro de 2022, a Federação Americana de Futebol (US Soccer) anunciou a determinação do pagamento igualitário para a seleção feminina e masculina, além do que seria considerado uma retratação -no valor de US$ 24 milhões- pelos anos de desigualdade.
Durante a própria Copa do Mundo de 2019, Megan rebateu as críticas feitas pelo então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que reclamou dos protestos da jogadora durante o hino do país. Trump afirmou que era “inapropriado” e que a jogadora deveria “ganhar antes da falar”. O resultado foi mais que certeiro: a seleção dos Estados Unidos venceu a Copa do Mundo Feminina da França e concretizou o título de seleção com mais vitórias em um mundial de mulheres. A força do ativismo das norte-americanas foi tão forte que na cerimônia de encerramento do torneio, quando a equipe se preparava para receber o título de campeã mundial, a multidão que assistiu à partida entoou, em uma só voz, duas palavras que não saíram da mente de cada participante daquela edição: “Equal Pay” (salários iguais).
As sementes plantadas na Copa do Mundo Feminina da França trouxeram frutos durante e após a competição. Após o protesto histórico de Marta, a CBF anunciou, em 2020, que os atletas da seleção masculina e feminina receberão o mesmo valor em diárias e premiações. Contudo, infelizmente, o valor repassado nas premiações da Copa do Mundo seguem desiguais. Apesar da discrepância persistir fora dos gramados, é inegável as conquistas de cada uma dessas mulheres citadas e de tantas outras que não foram mencionadas. A luta pelo futebol feminino seguirá e fará parte de cada um de nós que ama o futebol. As mudanças seguem lentas, mas essenciais para que o amor pelo esporte sobreviva em cada menina, que sonha em ser atleta, e em cada mulher, que sonha em ver a igualdade de gênero em todos os espaços.
